1.2 O ensino público de filosofia
A noção clássica de escola remete-nos para a educação formal, estrutura social e institucional, através da qual se transmitem saberes num espaço-tempo próprio. Este conceito é referente ao sistema escolar, institucionalizado, e pode ser considerado bastante rígido no que às aprendizagens diz respeito. Ainda que com algumas especificidades, tais como métodos pedagógicos distintos (Montessori, Steiner, etc.), e perfis próprios (escolas militares, religiosas, artísticas), a educação formal é facilmente reconhecível enquanto tal no mundo ocidental. A educação à distância, hoje e-learning, tem vindo a conquistar o seu próprio espaço desde o século XX, e as evoluções tecnológicas tendem a incorporar-se no espaço tradicional da educação formal presencial. A própria noção de ensino formal, tal como classicamente pode ser entendida, vê-se hoje confrontada com as aprendizagens não-formais e informais, isto é, com a educação e as aprendizagens que decorrem em ambientes não institucionais. Portanto, temos hoje uma multiplicidade de condições educativas substancialmente diferentes daquelas que existiam até há alguns escassos anos. Qual será a situação atual?
Periodicamente, a UNESCO elabora relatórios sobre as condições em que se verifica o ensino da Filosofia, uma espécie de diagnóstico geral acerca das condições de ensinabilidade da filosofia. O relatório “Teaching Philosophy in Europe and North America” foi publicado em 2011 pela Organização das Nações Unidas. Trata-se de um interessante relatório da UNESCO sobre o ensino de Filosofia na Europa e na América do Norte. São abordados vários níveis de ensino: primário, secundário e superior.
Este relatório elabora algumas recomendações quanto ao ensino de Filosofia na Europa e na América do Norte. Recomenda aos Estados que fortaleçam o ensino e divulgação do pensamento crítico, a pesquisa e institucionalização do ensino da filosofia nos níveis fundamentais dos sistemas educativos, a formação generalizada de professores de filosofia, nomeadamente na área da filosofia com crianças, e incita os professores de filosofia a explorar novas formas de ensinar filosofia, nomeadamente através de projetos interdisciplinares.
Já em “Philosophy – A School Of Freedom”, a UNESCO defende que a grande questão a ser debatida neste momento não é didática, mas política: o que podemos esperar do ensino da filosofia? Defende-se que a finalidade da filosofia não é a produção de filósofos, mas a formação de cidadãos livres com a capacidade de analisar e questionar os conhecimentos com que se defrontam, apresentando como exemplos as orientações programáticas de França e Portugal a este propósito.
This debate is now behind us and the real issue is no longer didactic but political: what do we actually expect from the teaching of philosophy? We must not forget that the purpose of such teaching, where it exists, is not necessarily, or even primarily, to produce future philosophers, but free citizens with the ability to make a proper analysis and to ask the right questions when faced with the various types of knowledge they will inevitably encounter. (UNESCO, 2007, p. 39)
Pela voz do professor Alfredo Reis, este relatório salienta que o ensino de filosofia em Portugal assume um papel civilizacional, ao surgir como um local de encontro de conhecimentos e experiências, o lugar do pensamento crítico, o exercício da liberdade e o alargamento de horizontes. De um modo geral, a UNESCO considera que a instilação do pensamento crítico e criativo nas crianças é determinante, pelo que a introdução da disciplina de filosofia deve começar tão cedo quanto possível, entre os 3 e os 12 anos. Contudo, a UNESCO também salienta a necessidade de uma formação adequada de professores valorizando a diversidade de práticas e estratégias pedagógicas. Durante a adolescência, propõe a filosofia como domínio da aprendizagem do raciocínio, mas também das competências críticas e reflexivas, dado que uma das suas forças é o seu poder desconstrutivo.
Estes relatórios da UNESCO são bastante generalistas, pelo que importa conhecer com maior profundidade a situação escolar da filosofia. Façamos uma breve retrospetiva histórica pelo ensino da Filosofia em Portugal, pois isso permitir-nos-á compreender melhor o momento presente.
No século XII já se ensinava filosofia em Portugal (Duarte, 2014). As súmulas de Lógica de Pedro Hispano tornaram-se referenciais até ao séc. XVI. No século XVIII, em Coimbra, estudava-se Lógica, Metafísica e Ética. No século XIX, a forte tradição católica dominante leva a que os autores protestantes fossem desconsiderados, sobrevalorizando os autores espanhóis e italianos e fechando-se às influências de ingleses e franceses. Já no século XIX, Silvestre Pinheiro Ferreira publica as “Prelecções Filosóficas“, um manual estruturado em 3 grandes temas: Teoria do Discurso e da Linguagem (Lógica, Gramática Geral e Retórica); Estética, Ética e Direito Natural; Cosmologia, Ontologia e Teologia Natural. “Tempos houve em que os filósofos julgaram que aquele que ensinasse a Arte de Pensar ou Lógica não se devia intrometer com as regras de Arte de Falar, como a Gramática Geral e a Retórica.” (Duarte, 2014, p. 51). No final do mesmo século, Lopes Cardoso tipifica quatro métodos essenciais de ensinar filosofia: o cronológico, o lógico, o etnográfico e o misto. Em 1905 é lançada a Reforma do Ensino de Jaime Moniz, que prevê para o 6.º ano dos liceus o estudo de Psicologia e Lógica, reservando Moral, Metafísica e Estética para o ano seguinte.
Em 1925, a Filosofia era uma disciplina propedêutica para entrada na universidade, com três áreas essenciais: Psicologia, Lógica e História da Filosofia (Almeida, 2014). Contudo, a Lógica é lecionada numa perspetiva fundamentalmente histórica. Em 1930 dá-se uma nova reforma educativa, com um Programa que inclui um campo de “Observações” que justificam a inclusão da Filosofia no sistema educativo: a filosofia é apresentada como uma disciplina fundamental pelo seu papel sistematizador e crítico de todo o sistema cultural, sendo salientada a importância de se evitar uma abordagem historicista; chega-se mesmo a proibir ao professor de filosofia a utilização exclusiva de métodos expositivos (Almeida, 2014, p. 96).
Luísa Nogueira (2014) assinala que no Programa de 1926 a Lógica assume maior extensão, sendo estudada a lógica aristotélica. Em 1934 os conteúdos de Lógica voltam a aumentar, com o estudo do silogismo, do entimema e do paralogismo, além da indução, da dedução e da analogia.
De 1948 a 1972, o programa de Filosofia insere-se no 3.º ciclo dos cursos liceais (correspondente a 10.º e 11.º anos) e inclui Psicologia (6.º ano) e Lógica, Teoria do Conhecimento, Ética, Estética e Metafísica (7.º ano). Tratava-se de um Programa no qual a moral cristã era claramente privilegiada, como se pode inferir da análise de um dos mais célebres compêndios da época: o manual de Augusto Saraiva.
O manual intitulava-se simplesmente “Filosofia”, com publicação pela Editora Educação Nacional[1]. Tratava-se de um compêndio para o 7.º ano liceal e, comparativamente com os manuais atuais era claramente distinto. Não apresentava uma única imagem: todo o livro continha apenas textos, sobretudo os do próprio autor. Como é natural, face às limitações tipográficas da época, os manuais não eram preenchidos com cores vivas e berrantes. Os conteúdos encontravam-se estruturados em temas, sucedendo-se em tópicos, sendo recorrente o recurso a alíneas para delimitar os assuntos. Não será arriscado afirmar que compêndios popularmente conhecidos como o “Saraiva” e o “Bonifácio” ficaram na memória de muitos dos professores, sendo visíveis algumas aproximações textuais em vários manuais ainda disponíveis no mercado. Eis o índice:
Lógica – objecto e divisão
Lógica e Gramática Lógica e Psicologia Divisão da Lógica Lógica do conceito – a ideia e o termo Compreensão e extensão da ideia A definição A classificação Lógica do juízo – o juízo e a proposição Quantidade e qualidade das proposições Classificação das proposições As inferências e suas espécies Inferências imediatas: conversão e oposição Lógica do raciocínio – inferências mediatas: dedução e indução Estrutura e fundamento do silogismo; exemplificação A presença implícita do silogismo no raciocínio humano O fundamento da indução Falácias Metodologia – natureza da ciência; espírito científico e espírito filosófico O problema da classificação das ciências Métodos gerais; a natureza das ciências e os métodos especiais que requerem Métodos das ciências matemáticas: origem das matemáticas e carácter abstracto destas ciências; ponto de partida e fundamentos da demonstração; materiais da demonstração; casos de emprego da indução em matemática As ciências de factos: sua divisão Métodos das ciências físico-químicas: a observação; a hipótese; a experimentação Métodos das ciências biológicas; dificuldades de observação e de experiência; emprego da analogia; o tipo; a classificação e os seus fundamentos Métodos das ciências do espírito: carácter destas ciências; dificuldades do seu estudo quanto à prova e à demonstração Métodos da História: materiais que ela utiliza; a crítica histórica e a possibilidade de erro e de incerteza; o facto histórico e o problema da sua importância e significado Métodos da sociologia: objecto e origens desta ciência; o inquérito; relações entre História e a Sociologia Teoria do Conhecimento – A possibilidade do conhecimento; sua origem e natureza; seu valor e limites O critério de validade do conhecimento: a verdade; atitudes da inteligência perante a verdade; o critério da certeza Ética – objecto e carácter normativo; divisão Moral formal – a consciência moral; sua natureza e origem A liberdade e a responsabilidade moral O critério do Bem e as diferentes concepções da vida moral Determinação do conceito de Bem na moral científica e na moral cristã (o fim último do Homem) O direito e os seus fundamentos Moral prática – referência breve aos deveres do Homem para com Deus, para consigo mesmo e para com a sociedade Estética – a essência do Belo. As belas-artes. A arte e a moral. Metafísica – objecto e divisão Ontologia – os problemas ontológicos. Cosmologia racional – o espaço e o tempo segundo o senso comum; as concepções clássicas e concepções modernas do espaço e do tempo. A matéria A vida Psicologia racional – objecto da psicologia racional. O princípio da vida. Natureza e atributos da alma. Teodiceia – panteísmo; teísmo; existência de Deus; natureza de Deus; relações do mundo e do Homem com Deus
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Neste manual, o autor discorre sobre as várias disciplinas da Filosofia com uma aparente intenção teleológica, da Lógica à Filosofia da Religião, com passagem pela Epistemologia, Ética, Estética, Metafísica e Ontologia. Engloba ainda a Psicologia num ponto de vista pouco “científico”, muito marcadamente “filosófico”, numa altura em que a Psicologia já se tinha constituído sobejamente como ciência e adquirido um estatuto autónomo da Filosofia.
O capítulo sobre Lógica é bastante interessante. Embora se detenha na lógica escolástica, fá-lo de forma competente e organizada. O capítulo dedicado à Epistemologia assenta em classificações hoje pouco usuais, mas faz referência a autores que, na época, seriam considerado inovadores, como Hilbert. Este capítulo integra de forma notável os conhecimentos de Lógica e faz uma aproximação efetiva à tão propalada interdisciplinaridade, com recurso a demonstrações matemáticas e referências à Biologia. São apresentados sucintamente autores como Claude Bernard, Stuart Mill, Leibniz, Kant, Descartes, Comte. A secção sobre Ética estabelece a relação entre as teorias hedonistas e utilitaristas, chamando a estas últimas “a doutrina moral dos filósofos ingleses”. Do lado da ”moral racional” são apresentados Aristóteles, Kant e São Tomás. Este capítulo termina com a determinação do conceito de Bem de acordo com a moral cristã. A mesma linha segue o capítulo sobre a moral prática, com claras concessões ao catolicismo. O capítulo sobre Arte é notoriamente marcado pelos filósofos francófonos, como Étienne Souriau e Nédoncelle. A Filosofia da Religião não chega a discutir a existência de Deus: são fornecidas “provas” da existência de Deus sem contraditório ou discussão dos argumentos.
Em suma, tratava-se de um manual de filosofia que não ensinava a filosofar, se é que algum manual o deve fazer, pois essa é uma incumbência do professor. Alguns temas são apresentados acriticamente e a orientação didática aponta para aulas profundamente expositivas, magistrais, sem evidência de problematização. Nem a enunciação de um problema, por si só, seria suficiente, pois o que há de verdadeiramente didático é levar o aluno a formular e compreender o problema, levar o aluno a analisar e discutir os argumentos, criar as suas próprias objeções, elaborar ou reelaborar os conceitos fundamentais com que se depara.
Segundo Luísa Nogueira (2014), os manuais escolares ou compêndios, livros que compilam o conhecimento escolar, tornaram-se tradicionais, orientando os professores para aulas magistrais. O compêndio permitia a leitura expositiva de um assunto com apontamentos ditados pelo professor. “Os manuais surgem, assim, em relação direta com um determinado tipo de ensino num processo de mediação em segundo grau.” (pp. 9-10)
A vantagem evidente do uso de manual era a economia de tempo, pois deixava de ser necessário ditar ou copiar todos os conteúdos e, simultaneamente, garantia-se a uniformidade de matérias lecionadas. “Este último aspeto é particularmente importante durante o período do Estado Novo que comprometeu o ensino e as aprendizagens com a leitura do manual. Esta suposta eficiência associada ao uso do manual parece estar, antes de mais, ligada a uma determinada conceção do processo de aprendizagem e de transmissão do saber em que domina um modelo de passividade e de obediência” (Nogueira, 2014, p. 11)
Ora, o manual de filosofia permitia poupar tempo, mas tornava-se ele próprio a substantivação do Programa, confundindo-se um com o outro; simultaneamente, o ensino ficava centrado nos conteúdos de exame; mas esta colagem ao manual revela-se também uma “atração fatal. Uma vez que o manual se substitua ao professor, o que resta da filosofia no ensino desaparecerá também.” (Nogueira, 2014, p. 15-16).
Ferreira (2014) assinala que, com a Revolução de Abril, todos os programas do sistema educativo português foram remodelados. Em poucos meses foi preparado um programa para entrar em vigor no ano letivo 1974-5. Perante tal quadro, e depois de uma consulta a todos os professores de filosofia que não reuniu consensos, foi apresentado um programa provisório para o 6.º e 7.º anos do Liceu. O 6.º ano incluía a Psicologia, radicalmente separada da Filosofia mas ainda com um certo pendor filosófico. No 7.º ano surgiam tópicos como a atitude filosófica, a dialética ação-conhecimento e alguns problemas próprios da filosofia. O capítulo seguinte era dedicado à fundamentação lógico-matemática do pensamento, com o estudo de elementos de lógica mas eliminando a lógica aristotélica. O programa contemplava ainda o conhecimento experimental, as ciências humanas, a natureza e valor das ciências e os valores do Homem (éticos, estéticos e religiosos). Propunha-se a leitura integral de obras de autores, sendo a hermenêutica dos textos a sua principal finalidade. Ferreira (2014, p. 122) aprecia criticamente este programa, considerando que era evidente a influência dos programas curriculares franceses. A sua enorme extensão conduziu ao seu sistemático incumprimento, “prática que durante anos foi aceite como normal. Qualquer tentativa de cumprimento integral da matéria teria como consequência uma inevitável superficialidade, o que também não era desejável”. E, também segundo Ferreira (2014, p. 123),
“A sobrevalorização da orientação francesa nas abordagens temáticas resultou da pouca divulgação entre nós das obras em língua inglesa. (…) A extensão do programa levou ao seu incumprimento, o que constituiu um mau hábito que se instalou por alguns anos. A impossibilidade real de trabalhar todos os itens propostos desresponsabilizou os docentes que passaram a interpretar livremente todos os tópicos, demorando-se naqueles que mais lhes agradavam ou que mais agradavam aos alunos, generalizando-se a identificação da didática da filosofia como um terreno em que tudo era permitido”.
Deste programa fazia parte, na introdução ao 10.º ano, um tópico que ficaria conhecido por “Do Mito à Razão”, e que seria abordado por manuais e professores como uma oportunidade para lecionar a história da filosofia pré-socrática. Exemplo disso é o manual “No Reino dos Porquês”, de Maria Helena Varela Santos e Teresa Macedo, com 664 páginas, das quais as primeiras 184 são inteiramente reservadas à filosofia pré-socrática, sob o título geral “A Emergência do Filosofar”.
Ferreira (2014, p. 131) aponta uma crítica importante: a lista dos pensadores apresentados levantou alguma celeuma. Para além dos clássicos, cuja introdução foi aceite sem problemas, nota-se no elenco escolhido uma “orientação predominantemente bachelardiana e um privilégio do pensamento continental, esquecendo os filósofos de língua inglesa”. (Ferreira, 2014, p. 131).
Efetivamente, percorrendo as páginas de três manuais com muito sucesso comercial nos anos 80, verificamos que em todos eles a didatização dos conteúdos se encontra estruturada em temas, e não em problemas. Assim, no referido “No Reino dos Porquês” encontramos este índice, do qual transcrevemos apenas alguns tópicos:
A emergência do filosofar
O filosofar espontâneo e sistemático A atitude filosófica Do filosofar à filosofia O mito: a arqueologia da Razão Do mito à razão As origens da Filosofia Os primeiros filósofos Platão A dialéctica da Acção e do Conhecimento: a Filogénese A Ontogénese O Homem, Produto e Produtor de Cultura Razão – Desrazão A diversidade da Acção Humana – os Valores Os Valores Religiosos Os valores Éticos O Outro Os Valores Políticos Os Valores Estéticos
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No 11.º ano, o manual “O Saber e as Máscaras”, das mesmas autoras, com 415 páginas, apresentava estes tópicos no índice:
A dialéctica da acção e do conhecimento. A dominância do conhecimento
Platão e o saber como sistema Galileu e a criação da ciência moderna Descartes Bachelard, uma epistemologia da razão aberta, ou a defesa da filosofia do Não
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Por fim, no 12.º ano, o manual de Alfredo Reis, intitulado “Filosofia”, com 432 páginas, já continha ilustrações (apenas preto e escala de cinzas) e algumas preocupações didáticas. O manual estruturava-se em capítulos dentro dos quais é possível encontrar uma breve explicação prévia efetuada pelo autor, seguida de textos de referência predominantemente dos filósofos em estudo e concluindo com tarefas a desenvolver pelos alunos. Sumariamente, eis o índice deste manual:
Primeira parte: a revolução cartesiana
Descartes Segunda parte: a revolução idealista Kant Fichte Hegel A Crise da razão Schopenhauer Kierkegaard Nietzsche
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Tal como anteriormente referido, é flagrante a ausência de filósofos de língua inglesa. O mesmo sucede com os autores dos textos escolhidos para acompanhar os conteúdos nestes manuais, todos eles inseridos numa tradição francófona ou germanófona. Para o comprovar, apresentam-se, a título de exemplo, os dez primeiros autores de textos didáticos apresentados em cada um desses manuais, respetivamente: Ajdukiewicz, Husserl, Karel Kosik, Ernst Cassirer, Maurice Merleau-Ponty, Vergílio Ferreira, Alberto Caeiro, Jean-Paul Sartre, Serge Moscovici, Yves Michaud; Nicolai Hartmann, Karl Jaspers, Edgar Morin, Karl Popper, Albert Einstein, René Leclerq, Poincaré, Virieux-Reymond, Sedas Nunes; Alexandre Koyré, Edgar Morin, Lefèvre, Rivaud, Alquié, Châtelet, Deleuze, Lacroix, Georges Pascal, Raymond Vancourt.
O “Programa Carrilho”, de 1990, não se impôs. A Reforma Curricular de 1989 pretendia substituir a disciplina de Filosofia por uma História das Ideias e da Cultura, com base na constatação de que a maioria dos “docentes de filosofia se limitava a uma abordagem histórica dos filósofos e dos conteúdos por eles abordados” (Ximenez, 2014, p. 138). Sobre o Programa Carrilho pendiam várias críticas, nomeadamente o facto de “ser excessivamente analítico e de romper com a tradição do ensino da Filosofia em Portugal” (Ximenez, 2014, p. 139).
De facto, tratava-se de um programa inovador, que à partida apelava mais ao filosofar e prestando-se menos a um ensino memorístico e historiográfico da filosofia.
O Programa Carrilho apelava a competências argumentativas e críticas, sem dúvida indissociáveis do mundo atual, centrado em problemas e não num elenco histórico de autores. Ou seja, a grande inovação deste programa seria o recurso a autores da tradição analítica sem subestimar a tradição continental, a colocação da Lógica no 10.º ano (como propedêutica da atividade filosófica), a valorização das competências argumentativas e a estruturação dos conteúdos em torno de problemas, mas nunca entrou em vigor.
O Programa de 1992 encontrava-se estruturado em torno de temas e elegia algumas competências fundamentais: conceptualização, análise, síntese, interpretação e avaliação, uma abordagem muito próxima da enunciada por Boavida. Tratava-se de um programa que procurava uma solução consensual, ultrapassando a polémica gerada pela proposta de Carrilho.
Entretanto, em 1995 é publicado um novo programa para o 12.º ano que previa a leitura integral de 3 obras de diferentes autores e épocas. Não tardaram as críticas: “o aluno-alvo privilegiado era o futuro aluno de filosofia do ensino universitário e os professores não tinham [recebido] qualquer formação para a leitura integral de uma obra filosófica. (…) Era pedir demais, convenhamos.” (Vicente, 2014, p. 158). Comparativamente com o programa anterior, autores como Marx, Feuerbach e Kierkegaard deixavam de ser lecionados, o que tornava a disciplina menos atrativa para cursos como Direito, Economia ou Sociologia. Em 2006 seria extinto o exame nacional de Filosofia A, então a designação da disciplina no 12.º ano, e a disciplina tornou-se absolutamente residual.
Martins (2014, p. 165) considera que o Programa de 2001 tem a vantagem de ser pedagogicamente mais atual, mais aberto, mas essa mesma abertura levou a que o programa se tornasse algo vago quanto a conteúdos, dificultando uma avaliação externa, nomeadamente através de exames nacionais, por não existir uma harmonização dos conteúdos a nível nacional. De facto, o Programa de 2001 não apresentava obras e autores de referência, dificultando a realização de exames nacionais.
Muito se discutiu acerca da oportunidade de debater novos programas de Filosofia num momento em que ainda não estão completamente implementados os programas homologados no quadro da Reforma do Ensino Secundário em curso. No entanto, este debate justifica-se pelo menos por duas razões: por um lado, os programas actualmente em vigor padecem de deficiências científicas e didácticas, oportuna e publicamente escrutinadas em Renovar o Ensino da Filosofia, que urge corrigir em nome da excelência no ensino da Filosofia; por outro lado, os actuais programas do 10.º e 11.ºanos foram elaborados pressupondo a inexistência de exames nacionais na disciplina. Sendo a avaliação sumativa externa uma indiscutível ferramenta de aferição da qualidade dos programas, das práticas e dos materiais pedagógicos, é indispensável a elaboração de programas consentâneos com uma tal avaliação, quer a legislação a consagre quer não. Ora, tal não é possível com os actuais programas. (Costa, 2005)
Face a essa dificuldade, surgiram as Orientações para a Lecionação do Programa de Filosofia (OLPF), que tiveram existência efémera: afinal, projetadas para harmonizar aquilo que parecia vago e confuso, viriam a tornar-se rapidamente obsoletas pela extinção do exame nacional da disciplina, poucos meses mais tarde. As OLPF estiveram na origem de uma das maiores polémicas à volta das orientações programáticas, pois agudizaram tensões entre aqueles que defendiam uma linha mais analítica (com pendor para lógica e argumentação), ou continental (com preponderância de competências interpretativas e valorização historicista). Sobre isto, diz Martins (2014, p. 171) que
“Seria um exagero afirmar que a supressão do exame nacional de filosofia se deveu à polémica entre os filósofos, mas é impossível não dizer que os filósofos transferiram para a escola fatores que a escola deve evacuar, sob pena de a filosofia ver reduzir e fragilizar ainda mais o seu espaço de projeção”.
Em 2011 surgiriam as “Orientações para efeitos de avaliação sumativa externa das aprendizagens[2]“, com o objetivo de harmonizar conteúdos e objetivos em situação de exame. Durante o ano letivo 2016/2017, no âmbito do projeto de “Autonomia e Flexibilidade Curricular”[3] e com a aprovação do “Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória[4]”, o Ministério da Educação solicitou a redefinição das Aprendizagens Essenciais de todas as disciplinas, tendo encarregue a Associação de Professores de Filosofia (Apf) de reelaborar objetivos e conteúdos dos programas de Filosofia dos 10.º, 11.º e 12.º anos. No final desse ano letivo, o Ministério da Educação publicou as Aprendizagens Essenciais para o 10.º ano[5], um documento conjuntamente elaborado pela Apf e pela SPF[6].
Sobre as sucessivas mudanças programáticas, Teresa Ximenez (2014) faz uma análise crítica, considerando que a formação de professores tem sido descurada, sem que haja uma avaliação de cada nova experiência e com mexidas pouco relevantes nos programas. Daí resultam alguns problemas, assim identificados:
- Os métodos utilizados são antiquados e desajustados à nova realidade escolar;
- As reformas são, muitas vezes, «pequenas modificações», acertos ou «enxertos» em itens programáticos já muito gastos;
- Os professores continuam a leccionar o programa que querem e que, invariavelmente, é o mesmo há muito tempo. Conseguem adequar as novas orientações aos antigos programas da sua eleição. Lembro a situação da unidade «Do mito à razão» que foi leccionada por variadíssimos anos, mesmo após o desaparecimento do programa que a integrava. (Ximenez, 2014)
Não deixa de ser interessante que neste texto Ximenez manifestasse preocupações que viriam a ser consubstanciadas pelas AE de 2017:
Julgo que se deveria inverter a ordem da leccionação dos conteúdos do 10.º Ano e do 11.º Ano: assim, no 10.º ano, ano de iniciação à Filosofia e às problemáticas filosóficas, dever-se-ia insistir essencialmente na aquisição de competências básicas que permitissem o trabalho posterior, por isso consideraria que a unidade de Lógica deveria ser introdutória ao trabalho filosófico e que os problemas de Epistemologia e de Filosofia da Ciência também se adequariam melhor a este nível de ensino. Em relação ao 11.º Ano, depois de desenvolvidas as competências básicas, poder-se-ia, então, abordar e desenvolver com mais rigor as questões da Ética, Filosofia da Arte e Filosofia da Religião. (Ximenez, 2014)
Será importante, neste ponto, refletir acerca do lugar da Lógica no ensino da filosofia. A proposta da Lógica como propedêutica da atividade filosófica já fora apresentada no Programa Carrilho, mas sem sucesso. Contudo, são vários os autores que defendem a sua introdução no primeiro ano de estudos e, além disso, especificam quais os conteúdos mais convenientes, do ponto de vista didático, para a sua lecionação.
Paulo Ruas (2003) refere que a filosofia consiste na elaboração de teorias que respondem a problemas de caráter conceptual, ou seja, aqueles para os quais não podemos obter respostas através de dados empíricos. Ora, uma teoria é uma resposta a um problema que se apoia em argumentos; e a avaliação de argumentos tem de ser feita com conhecimentos de lógica.
Assim, a inclusão de uma unidade de lógica num programa de filosofia destinado ao ensino secundário tem um valor instrumental e destina-se a fornecer aos estudantes meios conceptuais que lhes permitam discutir e avaliar criticamente os problemas, teorias e argumentos da filosofia (incluídos nas outras unidades): fornece-lhes um modelo facilmente manipulável do que é pensar de maneira clara e fundamentada. (Ruas, 2004, p. 76)
Mas qual Lógica? Ainda será possível manter a lógica aristotélica? Paulo Ruas é claro: deveria ser ensinada a lógica de predicados.
A lógica de Aristóteles está ultrapassada no plano científico, tendo hoje apenas um interesse histórico. Quem considerasse relevante dar a conhecer a estudantes do ensino secundário as condições de validade dos silogismos no contexto de um programa de filosofia, deveria incluir a leccionação, suficientemente estendida, do moderno cálculo de predicados. Este objectivo parece-me, no entanto, desproporcionado. O carácter eminentemente instrumental que a lógica pode assumir aqui, aconselha a proceder diferentemente. (Ruas, 2003, p. 77)
No mesmo sentido se encontram outros autores, considerando que a lógica aristotélica não constitui, sequer, uma opção, pois “resulta na desmotivação dos alunos, no descrédito da disciplina e contribui ativamente para a persistência de um ensino antiquado, formalista e sem rigor”. A conclusão apresentada por Miguel é elucidativa:
Em primeiro lugar, a Lógica Aristotélica, sendo mais limitada que a Lógica Proposicional, não dota os alunos de competências tão úteis quanto esta última; em segundo lugar, a Lógica Aristotélica tal como apresentada pelo Programa, não permite dar conta de um dos seus pontos, ao contrário da Lógica Proposicional; em suma, portanto, concluímos que não é o caso que a opção entre que lógica leccionar seja indiferente para o cumprimento dos objectivos do Programa e que a Lógica Aristotélica deve ser preterida à Lógica Proposicional. (Miguel, 2013, p. 4)
Esta breve síntese histórica da evolução dos programas de Filosofia no plano curricular do ensino secundário em Portugal e do lugar da Lógica na Filosofia permite-nos compreender que foi latente durante muito tempo uma tensão entre as várias tradições filosóficas, com repercussões sobre o ensino da Lógica, dos autores e temas preferenciais e, sobretudo, das conceções didáticas da disciplina. Permite-os também superar a dificuldade inicial, que era a de saber se a filosofia é ensinável: que ela se ensina, isso é certo, malgrado as tensões daí decorrentes. Mas vejamos o caso de outros países.
O ensino de filosofia no Brasil foi reintroduzido recentemente, em 2008 (Fávero, 2004). Nos anos 60 do século XX, a filosofia era ensinada sobretudo nos cursos de formação de professores (Rodriguez, 1986). Contudo, em 1971 foi feita uma reforma do sistema educativo brasileiro e a filosofia desapareceu dos curricula. Consequentemente, verificou-se o desemprego em massa dos milhares de brasileiros que estudavam cursos de licenciatura para se tornarem professores no Ensino Médio. Em 1975 ainda existiam cinco mil alunos matriculados nessas licenciaturas. Em 1981, alguns Estados introduziram a Filosofia como opção. Em 2004, a pedido da UNESCO (Fávero, 2004), foi feito um levantamento sobre o ensino da disciplina em vários países, abrangendo o Brasil. Neste estudo, verificava-se que os programas de filosofia elaborados para o Ensino Médio eram organizados de acordo com quatro modelos:
1) Por temas: nesse caso, predominam temáticas como conhecimento, verdade, valores, cultura, ideologia, alienação, sexualidade, condição humana, finitude, liberdade, poder, política, justiça, arte, meios de comunicação.
2) Por domínios ou campos filosóficos: aqui aparecem prioritariamente os campos já citados anteriormente, como cultura geral, filosofia antiga, ética, história da filosofia, teoria do conhecimento e política.
3) Por problemas: nesse caso, os conteúdos são articulados em torno de problemas filosóficos, entre os quais o problema do ser, do conhecer, do agir, da ciência etc.
4) Por critérios cronológicos: aqui o referencial passa a ser a história, sendo que predominam as filosofias antiga e moderna. (Fávero et allia, 2004, p. 271)
Na inexistência de um programa central e único, os professores optam por seguir alguns livros didáticos existentes no mercado, tais como “Filosofando”, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, e “Convite à filosofia”, de Marilena Chaui.
Didaticamente, o método expositivo é predominante e, muitas vezes,
(…) o trabalho limita-se à interpretação e contextualização de fragmentos de alguns filósofos, ou de debate sobre temas atuais, confrontado com pequenos textos filosóficos. Mais recentemente, muitos professores passaram a adotar uma metodologia mais participativa na qual os alunos trocam opiniões sobre os assuntos em debate. Os professores costumam utilizar-se de músicas e de filmes em vídeo para suscitar a análise e o debate em torno de determinados temas. Há, também, a discussão a partir de crônicas, matérias de jornal ou revistas; organização de júri simulado para discutir certo tema; trabalhos com músicas e vídeos; trabalhos de grupo. Ainda, em muitos casos, existe a introdução de técnicas de relaxamento, e outras práticas que aproximam a aula de filosofia de uma “terapia coletiva”. É pouco freqüente a leitura de textos de filósofos, de primeira mão. Em termos gerais, podemos afirmar que o ensino de filosofia feito no Brasil ainda é bastante tradicional, muito embora tenha avançado com relação a um ensino descontextualizado da história da filosofia, voltando-se mais para temas e problemas filosóficos. (Fávero, 2004, p. 272-273)
Segundo este estudo, o programa de Filosofia para Crianças de Lipman tem sido introduzido, aportando metodologias didáticas mais ativas, com práticas dialógicas, participativas e cooperativas.
Depois de vetada em 2001 (Cesar, 2012), a obrigatoriedade conjunta das disciplinas de Filosofia e Sociologia viria a ser plasmada em lei, em 2008, com a finalidade de possibilitar a
“Ressignificação da experiência do aluno, tanto de seu posicionamento e intervenção no meio social, enquanto futuro construtor do processo histórico, como de leitura e constituição de um olhar mais consistente sobre a realidade.” (Lucrécio Júnior, 2010, p. 155)
Na última década, e embora semanalmente cada turma tenha apenas uma aula de Filosofia, a falta de professores com formação adequada originou que muitos professores de filosofia portugueses migrassem para o Brasil, em busca de oportunidades de emprego no ensino superior e no ensino médio, oportunidades essas que rareavam em Portugal – em 2006 existiam 2032 candidatos a contratação no Grupo 410, mas a grande maioria não conseguia obter qualquer colocação[7].
Tal como em Portugal, existem orientações curriculares para o ensino de filosofia[8]. Numa tentativa de determinar as competências, este documento refere
A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando quando se trata de ensinar Filosofia no ensino médio? Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos. (Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006)
Este elenco de competências parece confundir finalidades do sistema educativo, competências gerais do ensino e competências específicas da filosofia. Mas, no mesmo documento, também se lê
Sinteticamente, pode-se manter a listagem das competências e das habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia a em três grupos:
1º) Representação e comunicação:
- ler textos filosóficos de modo significativo;
- ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas e registros;
- elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo;
- debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em face de argumentos mais consistentes.
2º) Investigação e compreensão:
- articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais.
3º) Contextualização sociocultural:
- contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sociopolítico, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica. (idem)
A situação atual da disciplina no Brasil, ainda que com alguns avanços e recuos, é ainda complexa, dada a escassez de profissionais com a devida formação, mas as ideias são já bastante claras:
Sendo assim, ensinar Filosofia é de extrema importância, independentemente da etapa de educação (ensino fundamental, ensino médio, ensino superior). Seu ensino deve envolver forma e conteúdo, ou seja, tanto a história da filosofia como as habilidades e capacidades devem ser ensinadas e desenvolvidas. Sobre o desenvolvimento de capacidades, podemos citar a proposta lipmaniana, que defende que o ensino de filosofia amplia a capacidade de análise, de leitura e de abstração; induz o sentido do questionamento e do problemático; alarga as técnicas de argumentação e conduz ao desenvolvimento do raciocínio; abre para uma interrogação conceitual (clarificando os conceitos) e uma reflexão racional; instaura uma distância crítica e convida a um regresso reflexivo sobre si e sobre as condições de possibilidade de um pensamento; tem a tarefa de elucidação da nossa relação com o mundo, recolocando as questões de fundo para serem discutidas; além da manutenção do desejo natural do ser humano de conhecer a si mesmo e o mundo; a filosofia é formadora no sentido do desenvolvimento do homem como ser que busca compreensão, ser que questiona e cria saídas.” (Cesar, 2012)
As controvérsias não são exclusivas do Brasil. Uma das maiores controvérsias públicas em torno do ensino da filosofia ocorreu em França, no final dos anos 70 e nos anos 80 do século XX.
Após os eventos de maio de 1968, com movimentações estudantis supostamente encabeçadas por estudantes de filosofia, o ministério da educação francês resolveu, em 1975, limitar o lugar da filosofia no currículo do ensino secundário. Em 1979, o Comité dos 21, do qual faziam parte Deleuze, Derrida, Foucault, Ricoeur, Châtelet, entre outros, lançou um apelo aos professores de filosofia, salientando que a própria UNESCO reconhecia a importância do ensino desta disciplina. Em 1975 é fundado o GREPH – Group de Recherche sur l’Enseignement de la Philosophie. Em 1979 era publicado o livro de Derrida “Qui a peur de la Philosophie?”. Ximenez refere que
“As várias lutas que em França se realizaram em defesa da Filosofia e do seu ensino são, para Derrida, um sinal da importância de uma comunidade filosófica ou de pensamento onde o polemos domina e a qual poderá devolver à filosofia o seu espaço de liberdade”. (Ximenez (201, p. 346)
Trinta anos mais tarde, em abril de 2004, realizaram-se os Encontros de Caparide, com a participação de Gérard Malkassian, da Association pour la Création d’Instituts de Recherche sur l’Enseignement de la Philosophie – ACIREPH. Numa comunicação intitulada “l’impossible reforme des programmes de philosophie dans l’enseignement secondaire en France”, Malkassian explica os tempos conturbados vividos ao longo das últimas décadas, considerando que o novo programa de 2003 não mudou o espírito do programa anterior, de 1973, apesar de um acordo generalizado sobre a inadaptação face à nova realidade escolar.
O modelo francês, nota Malkassian, foi construído a partir do de 1875. Em 1925, Anatole de Monzie estabelecia que a filosofia seria a aprendizagem da liberdade pelo exercício do pensamento autónomo, ou seja, um ensinamento capaz de capacitar cidadãos ativos, preocupados com a comunidade nacional. Ou seja, a filosofia seria um convite a que o aluno pense por si mesmo, mas essa é uma formulação ambígua que se aplica de igual modo ao conjunto do sistema educativo. Existia então, aponta Malkassian, uma ideia orientadora segundo a qual a filosofia seria a síntese dos estudos anteriores, uma disciplina com a função de dar sentido aos conhecimentos heterogéneos. Efetivamente, convém salientar que entre 1902 e 1967 a Filosofia era a disciplina fundamental do Baccalauréat francês, tendo sido instituída por Napoleão Bonaparte em 1808. Atualmente, a prova de filosofia do Baccalauréat dura quatro horas e é constituída por um conjunto de questões: dois temas de dissertação e explicação de um trecho de uma obra de um dos autores do programa[9].
Este infográfico permite uma melhor compreensão do posicionamento do Baccalauréat em França[10]:
Figura 1 Baccalauréat em França
O Baccalauréat surge como culminar da adolescência, motivo pelo qual também é visto como a prova da maturidade, e a filosofia é a área do saber onde tal maturidade pode ser demonstrada. Mas como se demonstra essa maturidade? Quais são as finalidades ou competências expectáveis para um jovem de 17-19 anos? Que cidadãos se pretende cultivar?
Mark Sherringham, nomeado a 01 de agosto de 2009 inspetor geral da educação[11], elaborou um relatório sobre o ensino de filosofia em França. O relatório parte de uma questão simples: existirá um modelo educativo filosófico francês? Segundo Sherringham, o ensino de filosofia tem por finalidade a liberdade de pensamento, condição essencial do homem e do cidadão, e constitutiva do ideal republicano francês. Isto é, o ensino da filosofia, na esteira de Montesquieu, subordina-se a um princípio superior que é o cultivo de determinadas virtudes no cidadão. Digamos que existe aqui algum tipo de engagement político e ideológico: pretende-se que o professor não imponha qualquer doutrina, mas que evite expor os conteúdos numa abordagem historicista ou que transforme o programa num simples elenco de temas filosóficos. Metodologicamente, este autor apresenta dois princípios estruturantes: a “lição” para o professor e a “dissertação” para o aluno. Contudo, alerta, não se trata do mero desenvolvimento de técnicas argumentativas, pois isso provocaria o afundamento da filosofia na retórica e na sofística. Esta asserção parece constituir uma demarcação (ou insinuação?) face à filosofia analítica, mas, nas palavras do próprio autor,
En ce sens, l’idéal français du cours de philosophie est plus proche qu’il n’y paraît de la perspective de la philosophie analytique, dans la mesure où il s’agit d’abord de construire un problème en l’extrayant de la langue et de la pensée communes et de parvenir à travers l’analyse attentive de ses composantes à la formalisation des réponses appropriées. (Sherringham, 2004)
Parece subsistir alguma vagueza quanto à definição de filosofia e do seu ensino. Recorde-se: Malkassian apontara-o em 2004, ao considerar que existe um pressuposto ideológico que é também um truísmo: «o professor é o autor do seu curso»[12]. Não se vislumbra a formulação de qualquer problema filosófico; nenhuma ferramenta conceptual, nenhuma competência é definida, insistindo-se na afirmação de que «a filosofia é a sua própria pedagogia» sem demonstração de qualquer verdadeira preocupação pedagógica quanto ao progresso do aluno. Este modelo funcionou, ainda segundo Malkassian (2004), enquanto a escolaridade se destinava às elites, mas à medida que foram surgindo populações escolares heterogéneas, com a massificação do ensino, foi revelando as suas falhas e incapacidades. À falta de critérios comuns de correção das provas, os desentendimentos agravaram-se. O programa de 2003 é, acusa Malkassian, ” Une liste interminable de repères conceptuels très hétérogènes, détachés de tout champ de problèmes a été rajoutée, mais il est stipulé que jamais les sujets de baccalauréat ne pourront porter sur eux…”
Assim, o ACIREPh propôs que as finalidades da disciplina fossem redefinidas, partindo do princípio de que o pensamento autónomo dos alunos só será possível se os professores não forem incentivados a apresentar a sua própria visão da filosofia, antes devendo iniciar os alunos nos problemas fundamentais das várias disciplinas filosóficas, e que a aprendizagem da filosofia teria de ser feita em torno dos métodos da reflexão filosófica: domínio da definição de conceitos, análise e justificação de problemas, exposição de teses, argumentos e objeções. Enfim, tratar-se-ia também de confrontar os alunos com as ideias dos grandes filósofos. Neste contexto, um tal ensino de filosofia responderia de forma satisfatória à controvérsia «ensinar filosofia» ou «ensinar a filosofar», pois desenvolver-se-iam competências intrinsecamente filosóficas a partir dos conteúdos próprios da filosofia.
À semelhança do que acontece em França, o Programa de 1992 português para Filosofia é bastante aberto, deixando bastante liberdade ao professor na gestão dos conteúdos e das metodologias de trabalho. Ora, essa abertura acaba, como vimos, por criar tensões, ao acumular competências e conteúdos bastante heterogéneos. Se, por um lado, ultrapassamos a questão da ensinabilidade da filosofia, resta ainda saber que (ou qual) filosofia é ensinada e como o é. Ou seja, há que relacionar a filosofia com a sua didática.
[1] O manual de Augusto Saraiva pode ser encontrado em diversos alfarrabistas. A editora pode ser encontrada em http://www.editoraeducnacional.pt/sobre-nos
[2] Cf. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Secundario/Documentos/Documentos_Disciplinas_novo/orientacoes_filosofia_10_11.pdf
[3] Cf. http://www.dge.mec.pt/autonomia-e-flexibilidade-curricular
[4] Cf. http://dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/perfil_dos_alunos.pdf
[5] Cf. http://dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/ae_sec_filosofia.pdf
[6] Cf. http://apfilosofia.org/wp-content/uploads/2017/07/AE_Filosofia_10_11.pdf
[7] Cf. Listas de colocações dos Concursos de Contratação de Docentes, Grupo 410, de 2006.
[8] Cf. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf
[9] Um histórico dos exames pode ser consultado em http://eduscol.education.fr/prep-exam/index.php
[10] Cf. https://fr.wikipedia.org/wiki/Baccalaur%C3%A9at_en_France
[11] Cf. http://www.education.gouv.fr/cid28944/meni0900607a.html
[12] Veja-se, a este propósito, Bonin (2016)
Excelente.