Um texto na primeira pessoa sobre a eutanásia. É interessante para ver a perspetiva de um sobrevivente, alguém que venceu a morte ao cabo de 15 anos em coma.
“Acordei após quinze anos em coma e pensei que todos tinham enlouquecido”
Cortesia de Miguel Parrondo
MIGUEL Parrondo 2015/11/29 – 08:48 CET
Eu trabalhava como programador informático no Banco Pastor, quando tive o acidente que me deixou 15 anos em coma. Então, no meu trabalho, eu ocupava-me de computadores gigantescos que funcionavam com cartões perfurados, o que não tem nada a ver com os atuais pequenos portáteis. Mas este não é o único contraste com o que eu encontrei quando eu acordei. É incrível o que mudou o mundo entre 1987 e 2002, o ano em que eu renasci.Para mim, aquilo de que mais gostei foi a velocidade. Cheguei a conquistar a Volta Motociclista à Galiza e viajei com minha BMW 1000 RS por países como Escócia, Grécia, Alemanha ou Itália. Na verdade, o excesso de velocidade foi a causa de meu acidente. Fui para Santa Cristina, que na época era a área festiva para toda a cidade, com as duas raparigas e um rapaz no meu Renault 5 GT Turbo. Mas numa curva perdi o controle e batemos contra a parede de um reformatório. Morreu uma das raparigas e eu, nos meus 32 anos, estava em coma.
Não me lembro de nada desse tempo, mas devia estar muito mal, pois o meu pai chegou mesmo a chamar o padre ao hospital para me dar a extrema-unção. No entanto, não resistiu. Vendo que a minha condição não melhorava, os médicos perguntaram ao meu pai se ele queria desligar-me. Mas ele, comoera muito católico, respondeu que Deus era o único que podia tirar a vida. Graças a essa convicção, posso agora contá-lo. Anos mais tarde, em 2009, muito se falou sobre o caso de Eluana Englaro, uma italiana que passou 17 anos em coma, a quem o seu pai pretendia eutanasiar. Meu pai insistiu que não se deveria fazê-lo, e depois o que aconteceu comigo, qualquer um o contrariaria.
Mas a verdade é que o meu caso deve ser um num milhão, como uma vez me disseram no hospital em Santiago. Desde então, eu nunca conheci ninguém que tivesse vivido algo semelhante. Dizem-me que a minha mãe passou o tempo todo comigo no hospital, até que um dia, em 2002, abri os meus olhos. Naquele momento eu tinha a minha filha na frente. “Tu és a Almudena?”, perguntei. Quando perdi a consciência a minha filha tinha 12 anos, mas ao despertar ela já era uma mulher de 28. Imaginem o choque e alegria que foi. O cérebro é uma coisa incrível.
O rosto de minha filha é a primeira lembrança que tenho da minha nova vida. E então veio a tarefa de me adaptar a todas as mudanças. Primeiro, a moeda. Quando eu tive o acidente eram usadas pesetas, mas quando despertei as pessoas já pagavam em euros. Foi como acordar num país estrangeiro com uma moeda diferente. Depois de deixar o hospital, também pensei que todos tinham enlouquecido porque lhes tinha dado para falar sozinhos. Mas, claro, eu nunca tinha visto um telemóvel. E tive que atualizar a geografia: a URSS já não existia, nem a Checoslováquia ou a Jugoslávia. Bem, poderia acostumar-me a tudo isso sem demasiado esforço.
Chamou-me a atenção como tinha disparado o número de carros em La Coruña. Será que tinham começado a oferecê-los? Tudo tinha sido preenchido com estacionamentos subterrâneos. E as áreas que eu andava de motorizada, de repente tinham sido urbanizadas. Senti-me como um estranho na minha própria cidade.
Também tive que me acostumar com o meu novo corpo: a primeira vez que enfrentei um espelho percebi que o meu cabelo tinha ficado branco. A roupa anterior ao acidente já não me servia, porque tinha inchado devido à medicação (já para não dizer que era muito antiga, claro). Mas esses 15 anos tinham uma vantagem, pois não se formou uma única ruga. Passei tanto tempo sem se exercitar o meu rosto que aparento agora menos do que os meus 60 anos.
Quando me recuperei deram-me o atestado de incapacidade permanente absoluta, pelo que nunca mais voltei a trabalhar. Teria sido uma tarefa difícil atualizar-me no meu trabalho, porque, se algo mudou nesses 15 anos, foram os computadores. Agora fico muito entediado. Às dez da manhã já li toda a imprensa e tomei quatro cafés. Além disso, quase não consigo dormir. É que durante esses quinze anos esgotei a quota de sono. A maioria dos meus amigos ainda trabalha, pelo que passo o dia a ver a vídeos. Na verdade, não entendo como as pessoas querem viver sem trabalhar. Isso é muito entediante, acreditem em mim.
Dos 15 anos que passei em coma, o que eu mais sinto falta é ter perdido os primeiros triunfos do motociclismo espanhol. Antes do meu acidente, os pilotos estrangeiros como Randy Mamola venciam tudo. Felizmente, esse hábito de ganhar títulos ainda permanece com Marc Marquez e Jorge Lorenzo. Embora às vezes, quando vejo as corridas, choro. É uma das coisas que mais me custam do acidente: as sequelas impedem-me de montar uma moto novamente. Atualmente estou a pensar em adquirir um triciclo para matar o vídio. Pelo menos, desde a minha recuperação que poderia conduzir o carro. E se antes do meu acidente tinha de mudar o óleo a cada 5.000 km, agora faço 30.000. É outra coisa em que nós evoluímos.
Mas não vou queixar-me muito: olhando para trás, penso que aproveitei muito bem os meus 32 anos de vida antes do acidente. A minha visão sobre a vida sempre foi “a vida são dois dias.” E apesar de ter perdido 15 anos por causa do acidente, posso dizer que aproveitei bem o meu tempo.
Texto elaborado por Alvaro Llorca a partir de entrevistas com Miguel Parrondo. Originalmente publicado em http://verne.elpais.com/verne/2015/11/26/articulo/1448537798_102022.html?id_externo_rsoc=FB_CM