A mistanásia: a “eutanásia social”

Uma frase freqüentemente utilizada é eutanásia social. No entanto, considero ser este um uso totalmente inapropriado da palavra eutanásia e, assim, deve ser substituído pelo uso do termo mistanásia: a morte miserável fora e antes do seu tempo. A eutanásia,tanto em sua origem etimológica (“boa morte”) como em sua intenção, quer ser um ato de misericórdia, quer propiciar ao doente que está sofrendo uma morte boa, suave e indolor. As situações a que se referem os termos eutanásia social e mistanásia, porém, não têm nada de boas, suaves nem indolores. Mistanásia em doentes e deficientes que não chegam a ser pacientes Na América Latina, de modo geral, a forma mais comum de mistanásia é a omissão de socorro estrutural que atinge milhões de doentes durante sua vida inteira e não apenas nas fases avançadas e terminais de suas enfermidades. A ausência ou a precariedade de serviços de atendimento médico, em muitos lugares, garante que pessoas com deficiências físicas ou mentais ou com doenças que poderiam ser tratadas morram antes da hora, padecendo enquanto vivem dores
e sofrimentos em princípio evitáveis. Fatores geográficos, sociais, políticos e econômicos juntam-se para espalhar pelo nosso continente a morte miserável e precoce de crianças, jovens, adultos e anciãos: a chamada eutanásia social, mais corretamente denominada mistanásia. A fome, condições de moradia precárias, falta de água limpa, desemprego ou condições de trabalho massacrantes, entre outros fatores, contribuem para espalhar a falta de saúde e uma cultura excludente e mortífera.
É precisamente a complexidade das causas desta situação que gera na sociedade um certo sentimento de impotência propício à propagação da mentalidade “salve-se quem puder”. Planos de saúde particulares para quem tem condições de pagar e o apelo às medicinas alternativas tradicionais e novas por parte do rico e do pobre, igualmente, são dados sintomáticos de um mal-estar na sociedade diante da ausência de serviços de saúde em muitos lugares e do sucateamento dos serviços públicos e da elitização dos serviços particulares em outros. Numa sociedade onde recursos financeiros consideráveis não conseguem garantir qualidade no atendimento, a grande e mais urgente questão ética que se levanta diante do doente pobre na fase avançada de sua enfermidade não é a eutanásia, nem a distanásia, destinos reservados para doentes que conseguem quebrar as barreiras de exclusão e tornar-se pacientes, mas, sim, a mistanásia, destino reservado para os jogados nos quartos escuros e apertados das favelas ou nos espaços mais arejados, embora não necessariamente menos poluídos, embaixo das pontes das nossas grandes cidades. Mistanásia por omissão é, sem dúvida, a forma de mistanásia mais espalhada no chamado Terceiro Mundo. 
Há, porém, formas de mistanásia ativa que merecem breve comentário tanto por causa de sua importância histórica como da tendência de confundi-las com eutanásia.
A política nazista de purificação racial, baseada numa ciência ideologizada, é um bom exemplo da aliança entre a política e as ciências biomédicas a serviço da mistanásia. Pessoas consideradas defeituosas ou indesejáveis foram sistematicamente eliminadas: doentes mentais, homossexuais, ciganos, judeus. Pessoas enquadradas nestas categorias não precisavam ser doentes terminais para serem consideradas candidatas ao extermínio. Pode-se argumentar, também, que o uso de injeção letal em execuções nos Estados Unidos, principalmente se a aplicação for feita por pessoal médico qualificado, é um abuso da ciência médica que constitui mistanásia e, de fato, é um tipo de má prática condenado pelo Código [Brasileiro] de Ética Médica (elaborado em 1988), no seu artigo 54. Os campos de concentração, com grande quantidade de cobaias humanas à disposição, favoreceram outro tipo de mistanásia ativa. Em nome da ciência, foram realizadas experiências em seres humanos que em nada respeitavam nem a integridade física nem o direito à vida dos participantes. Assim, seres humanos foram transformados em cobaias descartáveis.
O Brasil não está à margem da forte reação mundial a este tipo de comportamento. A Resolução n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, adota uma série de medidas para garantir a integridade e a dignidade de seres humanos que participam em experiências científicas. A resolução exige, nesta situação, cuidados especiais para defender os interesses de grupos vulneráveis. O Código de Ética Médica comunga com esta mesma preocupação quando, atentando para um grupo vulnerável específico, o paciente crônico ou terminal, proíbe explicitamente, em seu artigo 130, experiências sem utilidade para o mesmo, com a intenção de não lhe impor sofrimentos adicionais.

Mistanásia em pacientes vítimas de erro médico 

Um outro tipo de situação mistanásica que nos preocupa é aquela dos doentes que conseguem  ser admitidos como pacientes, seja em consultórios particulares, em postos de saúde ou em hospitais, para, em seguida, se tornarem vítimas de erro médico. O Código de Ética Médica (1988) fala de três tipos de erro médico: de imperícia, de imprudência e de negligência (artigo 29). Nossa intenção aqui é apenas apontar alguns destes erros que surgem no caso do paciente crônico ou terminal e que constituem mistanásia.
Um exemplo de mistanásia por imperícia é quando o médico deixa de diagnosticar em tempo uma doença que poderia ter sido tratada e curada porque ele descuidou da sua atualização e da sua formação continuada (conforme o art. 5º do Código). A imperícia do médico por desatualização condena o paciente a uma morte dolorosa e precoce.
Outra forma de mistanásia por imperícia é a equipe médica deixar de tratar adequadamente a dor do paciente crônico ou terminal por falta de conhecimento dos avanços na área de analgesia e cuidado da dor, principalmente quando este conhecimento for de acesso relativamente fácil. A falta de habilidade nesta área pode significar, para o paciente, uma morte desfigurada por dor desnecessária. 
A mistanásia como resultado da imprudência médica pode ser apontada em vários casos. Principalmente quando o médico for adepto da medicina curativa e não vê muito sentido em perder tempo com pacientes desenganados, ele pode correr o risco de prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente (postura condenada pelo artigo 62 do Código). Esta atitude talvez poupe o tempo do médico, mas expõe o doente a risco de terapia paliativa inadequada e sofrimento desnecessário, ambos características típicas da mistanásia. Outra forma de imprudência que pode levar a resultados mistanásicos é o profissional de saúde efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente, só porque é crônico ou terminal. Deixando de lado os casos previstos nos artigos 46 e 56 do Código (apelo ao responsável legal e iminente perigo de vida), a imprudência em desconsiderar a autonomia do paciente crônico e terminal pode provocar um mal-estar mental e espiritual devido à perda sensível de controle sobre sua vida, tornando miserável e mistanásico o processo de morrer. O direito de saber e o direito de decidir não são direitos absolutos, mas o respeito por eles no contexto de parceria entre o doente e a equipe médica certamente é elemento fundamental na promoção do bem-estar global do paciente em fase avançada ou terminal de sua doença.
Mistanásia por negligência também surge para ameaçar o doente que consegue se transformar em paciente. Sem levar em consideração os casos de mistanásia que atingem os doentes que não têm acesso a serviços de atendimento médico e que morrem antes da hora devido à omissão de socorro estrutural, queremos aqui apontar a mistanásia provocada por omissão de socorro na relação médico-paciente já estabelecida ou pelo abandono do paciente. É verdade que casos de negligência que provocam danos ao paciente crônico ou terminal, aumentando seu sofrimento e tornando mais miserável sua morte, podem ser fruto de preguiça ou desinteresse por parte do médico e tais casos, certamente, são reprováveis. Não seria justo, porém, jogar a culpa por toda a negligência nas costas do médico como indivíduo, já que muitas vezes a negligência é fruto de cansaço e sobrecarga de serviços devido às condições de trabalho impostas a muitos profissionais em hospitais e postos de saúde. Sem desmerecer estas considerações, é importante apontar duas formas de mistanásia por negligência onde o médico precisa se responsabilizar e que o atual Código de Ética Médica procura evitar: a omissão de tratamento e o abandono do paciente crônico ou terminal sem motivo justo.
Não se contesta que o médico tem, até certo ponto, o direito de escolher seus pacientes e ele não é obrigado a atender a qualquer um, indiscriminadamente (conforme o artigo 7º do Código). Este direito, porém, como tantos outros, não é absoluto. É limitado pela cláusula, no mesmo artigo, “salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente”. O princípio de beneficência e o apelo à solidariedade humana neste caso pesam mais que o princípio da autonomia do médico. O Código reforça esta posição no artigo 58 quando veda ao médico “deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em caso de urgência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo”. O médico que na ausência de outro se omite em casos de urgência ou que, pela inércia, causa danos irreversíveis ao paciente, precipitando uma morte precoce e/ou dolorosa, é responsável por uma negligência que constitui não apenas um erro culposo mas, também, uma situação mistanásica. Se esta posição é válida para os pacientes de modo geral, aplica-se de modo especial ao paciente crônico e terminal e o Código se esforça para indicar precisamente isso quando trata especificamente do problema do abandono do paciente. Além dos artigos 36 e 37 que vedam ao médico abandonar plantão e pacientes de modo geral, há um artigo que trata especificamente da problemática do abandono do paciente crônico e terminal, o artigo 61. A posição fundamental assumida é que é vedado ao médico “abandonar paciente sob seus cuidados”. As exceções são regulamentadas por dois parágrafos explicativos. O § 1º estabelece o procedimento a seguir quando o médico considera que não há mais condições para continuar dando assistência: “Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou seu responsável legal, assegurando- se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder”.
O § 2º insiste que o fato de o paciente ser portador de moléstia crônica ou incurável não é motivo suficiente para abandoná-lo, “salvo por justa causa, comunicada ao paciente ou a
seus familiares, o médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico”. É interessante notar que nos códigos de 1929 e de 1931, em artigos com a mesma numeração, o abandono do paciente crônico ou terminal é categoricamente proibido. De acordo com o artigo 8/1929 (pouco modificado em 1931): “0 médico não deverá abandonar nunca os casos chronicos ou incuraveis e nos difficeis e prolongados será conveniente e ainda necessário provocar conferencias com outros collegas”. O abandono do paciente crônico ou terminal que implica na recusa de “continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico” constitui, pois, por causa das suas conseqüências, uma forma de mistanásia rejeitada pela profissão médica no Brasil desde os primórdios da sua tradição codificada.

Mistanásia em pacientes vítimas de má prática

A grande diferença entre a mistanásia por erro médico e a mistanásia por má prática reside na diferença entre a fraqueza humana e a maldade. O erro, mesmo culposo por causa da presença dos fatores imperícia, imprudência ou negligência, é fruto da fragilidade e da fraqueza humana e não de uma intenção proposital de prejudicar alguém. A má prática, porém, é fruto da maldade e a mistanásia por má prática ocorre quando o médico e/ou seus associados, livremente e de propósito, usam a medicina para atentar contra os direitos humanos de uma pessoa, em benefício próprio ou não, prejudicando direta ou indiretamente o doente ao ponto de menosprezar sua dignidade e provocar uma morte dolorosa e/ou precoce.
Fundamental para esta análise é a convicção de que o foco de atenção para a profissão médica deve ser a saúde do ser humano, convicção formulada claramente no artigo 2º do Código de 1988: “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em beneficio da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”. O desvio deste alvo levanta sérias preocupações de ordem ética. Já é grave quando se usa a medicina para maltratar qualquer pessoa, como, por exemplo, na prática de tortura ou na comercialização de órgãos para transplante, principalmente quando retirados de doador pobre, vulnerável por causa de sua situação econômica.
Quando se usa a medicina para maltratar o paciente, a gravidade é mais complexa ainda por violar um relacionamento especial de confiança e de vulnerabilidade estabelecido entre a pessoa doente e o profissional de saúde. A malícia, aqui, consiste no uso maldoso da medicina contra o ser humano ou para tirar proveito dele, em lugar de usá-la para promover seu bemestar.
Não pretendemos demorar muito neste ponto, mas vale a pena indicar algumas situações típicas para ilustrar melhor esta forma de mistanásia.
Um primeiro exemplo de mistanásia por má prática pode surgir no caso de idosos internados em hospitais ou hospícios onde não se oferecem alimentação e acompanhamento adequados, provocando assim uma morte precoce, miserável e sem dignidade. Não há dúvida que tal situação constitui mistanásia, a única dúvida é de que tipo? É preciso distinguir entre a mistanásia que, por exemplo, ocorre numa cidadezinha pobre do interior, num abrigo para idosos abandonados mantido a duras penas por pessoas de boa vontade e com poucos recursos, e a mistanásia por má prática que surge numa empresa hospitalar quando a verba destinada à alimentação e acompanhamento dos idosos for desviada para beneficiar financeiramente donos, administradores ou funcionários da instituição, deixando os pacientesnuma situação de miséria, provocando-lhes uma morte indigna e antes da hora.
Outro exemplo de mistanásia por má prática, muitas vezes confundido com eutanásia por causa da motivação do responsável pelo ato, é quando profissionais de saúde, muitas vezes enfermeiros que têm dificuldades pessoais em conviver por longos períodos com pacientes terminais, por conta própria se tornam “anjos da morte”, administrando medicamentos aos seus pacientes idosos, crônicos ou terminais, visando apressar o óbito. O fato de ser motivado por compaixão não justifica esta atitude autoritária que, além de ferir o direito à vida dessas pessoas confiadas aos seus cuidados, fere também outros direitos ligados à autonomia do paciente crônico ou terminal: o direito de saber qual o tratamento proposto pela equipe médica e o direito de decidir sobre procedimentos terapêuticos que o afetam, ou pessoalmente ou por meio do seu responsável legal.
Claro que a má prática se torna muito mais grave se procedimentos para abreviar a vida de pacientes idosos, crônicos ou terminais, especialmente sem sua anuência, for política assumida pela administração do hospital ou hospice e não apenas iniciativa de profissionais isolados.
Um último exemplo de mistanásia por má prática é retirar um órgão vital, para transplante, antes de a pessoa ter morrido. O Código de Ética Médica de 1988 procura evitar esta prática proibindo ao médico que cuida do paciente potencial doador – e responsável pela declaração de óbito – participar da equipe de transplante.
Além da dimensão ética que pede respeito pelo direito à vida da pessoa, mesmo nos seus últimos momentos, há uma dimensão pragmática ligada com esta proibição. Se pessoas desconfiam que possam ser mortas para fornecer órgãos para outros, é bem possível que o número de pessoas recusando ser doador aumente significativamente.
Resumindo, podemos dizer que as situações de mistanásia provocada por erro são graves mas, de modo geral, são fruto da fraqueza e fragilidade da condição humana. Não devem ser julgadas com a mesma severidade com que se julgam situações mistanásicas onde as pessoas se tornam vítimas de má prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos, ou de outra forma de má prática qualquer fruto da maldade humana. 

Estas distinções todas que acabamos de ver são importantes porque nos permitem distinguir entre situações de impotência devido às macroestruturas sociais e às situações de responsabilidade individual ou comunitária marcadas pela fraqueza e a maldade humana.
Com esta análise das diversas formas de mistanásia, preparamos o terreno para tentar esclarecer melhor o sentido dos termos eutanásia, distanásia e ortotanásia.

Leonard Martin, 
in Iniciação à Bioética,
Organização: Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, Volnei Garrafa, Gabriel Oselka
Conselho Federal de Medicina – Brasília

Blogue em http://paginasdefilosofia.blogspot.com
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