Não é possível pensar em seja o que for no mundo, ou até fora dele, que se possa considerar bom sem qualificação exceto a vontade boa. A inteligência, a perspicácia, o discernimento e sejam quais forem os talentos do espírito que se queira nomear são sem dúvida bons e desejáveis, em muitos aspetos, tal como as qualidades do temperamento como a coragem, a determinação, a perseverança. Mas podem também tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade, que dará uso a estes dons da natureza e que na sua constituição especial se chama «carácter», não for boa. O mesmo acontece com os bens da fortuna; poder, riquezas, honra e até a saúde, e o completo bem-estar e satisfação relativamente à nossa condição a que se chama «felicidade» suscitam o orgulho e muitas vezes desse modo a arrogância, a não ser que exista uma vontade boa para corrigir a sua influência no espírito e desse modo também retificar todo o princípio da ação e torná-lo universalmente conforme ao seu fim. […] Uma vontade é boa não por causa dos seus efeitos ou do que consegue alcançar, nem por ser apropriada para alcançar um dado fim; é boa unicamente através da sua vontade, isto é, é boa em si. Quando é considerada em si, é muito mais estimada do que seja o que for que alguma vez ela poderia produzir meramente para favorecer qualquer inclinação, ou mesmo a soma de todas as inclinações. Mesmo que esta vontade, devido a um destino especialmente desafortunado ou à provisão mesquinha da natureza madrasta, seja completamente desprovida de poder para cumprir o seu propósito; se com o maior esforço nada conseguisse, contudo, alcançar e só a vontade boa permanecesse (não, é claro, como um mero desejo, mas como a convocação de todos os meios ao nosso alcance) – mesmo assim a vontade boa, como uma joia, brilharia com a sua própria luz como algo que tem todo o seu valor em si. A sua utilidade e esterilidade nunca podem aumentar ou diminuir o seu valor.
Immanuel Kant (1785), Fundamentação da Metafísica dos Costumes.