Augusto Saraiva, “Filosofia”

Pelos anos 60 e 70, um compêndio de Filosofia fez companhia a muitos daqueles que hoje são professores no ensino secundário. Refiro-me a “Filosofia”, de Augusto Saraiva, da então Editora Educação Nacional, com instalações na Rua do Almada, nº 25, no Porto.

O livro destinava-se aos alunos do 7º ano do Ensino Liceal e tinha diversas particularidades:

  • Não apresenta uma única imagem: todo o livro contém apenas textos, sobretudo os do próprio autor;
  • Como é natural, não existem cores, ao contrário do que profusamente se vê nos manuais de hoje;
  • As matérias sucedem-se em tópicos, sendo recorrente o recurso a alíneas para delimitar os assuntos.

Tenho um desses exemplares, comprado num alfarrabista da mesma cidade, a escassas centenas de metros de distância – na Rua das Flores, no “Chaminé da Mota”. Fascina-me o facto de o seu proprietário original manter o livro impecavelmente conservado, sem rasuras ou bonequinhos infantis por todo o lado. Em contrapartida, existem algumas anotações a lápis que indicam que o item foi lido ou compreendido. Em suma, estudado, coisa que hoje é digna de admiração.

Uma das [muitas] curiosidades que envolvem este livro é a sua perenidade: vários exemplos e mesmo alguns nacos de prosa de certos manuais actuais são retirados, linha por linha, do “Saraiva”.

Eis o índice:

Lógica – objecto e divisão
Lógica e Gramática
Lógica e Psicologia
Divisão da Lógica

Lógica do conceito – a ideia e o termo
Compreensão e extensão da ideia
A definição
A classificação

Lógica do juízo – o juízo e a proposição
Quantidade e qualidade das proposições
Classificação das proposições
As inferências e suas espécies
Inferências imediatas: conversão e oposição

Lógica do raciocínio – inferências mediatas: dedução e indução
Estrutura e fundamento do silogismo; exemplificação
A presença implícita do silogismo no raciocínio humano
O fundamento da indução
Falácias

Metodologia – natureza da ciência; espírito científico e espírito filosófico
O problema da classificação das ciências
Métodos gerais; a natureza das ciências e os métodos especiais que requerem
Métodos das ciências matemáticas: origem das matemáticas e carácter abstracto destas ciências; ponto de partida e fundamentos da demonstração; materiais da demonstração; casos de emprego da indução em matemática
As ciências de factos: sua divisão
Métodos das ciências físico-químicas: a observação; a hipótese; a experimentação
Métodos das ciências biológicas; dificuldades de observação e de experiência; emprego da analogia; o tipo; a classificação e os seus fundamentos
Métodos das ciências do espírito: carácter destas ciências; dificuldades do seu estudo quanto à prova e à demonstração
Métodos da História: materiais que ela utiliza; a crítica histórica e a possibilidade de erro e de incerteza; o facto histórico e o problema da sua importância e significado
Métodos da sociologia: objecto e origens desta ciência; o inquérito; relações entre História e a Sociologia

Teoria do Conhecimento – A possibilidade do conhecimento; sua origem e natureza; seu valor e limites
O critério de validade do conhecimento: a verdade; atitudes da inteligência perante a verdade; o critério da certeza

Ética – objecto e carácter normativo; divisão

Moral formal – a consciência moral; sua natureza e origem
A liberdade e a responsabilidade moral
O critério do Bem e as diferentes concepções da vida moral
Determinação do conceito de Bem na moral científica e na moral cristã (o fim último do Homem)
O direito e os seus fundamentos

Moral prática – referência breve aos deveres do Homem para com Deus, para consigo mesmo e para com a sociedade

Estética – a essência do Belo. As belas-artes. A arte e a moral.

Metafísica – objecto e divisão

Ontologia – os problemas ontológicos.

Cosmologia racional – o espaço e o tempo segundo o senso comum; as concepções clássicas e concepções modernas do espaçço e do tempo.
A matéria
A vida

Psicologia racional – objecto da psicologia racional. O princípio da vida. Natureza e atributos da alma.

Teodiceia – panteísmo; teísmo; existência de Deus; natureza de Deus; relações do mundo e do Homem com Deus

Como se vê, são cobertas diversas áreas da Filosofia, da Lógica à Filosofia da Religião, com passagem pela epistemologia, ética, estética, metafísica e ontologia. Engloba ainda a Psicologia num ponto de vista pouco “científico”. Tudo isto, insisto, num único ano de escolaridade.

O capítulo sobre Lógica é bastante interessante. Embora se detenha na lógica escolástica, fá-lo de forma competente e organizada, coisa que não é visível em alguns dos manuais actualmente em vigor. O capítulo dedicado à epistemologia assenta em classificações hoje pouco usuais, mas faz referência a autores que, na época, devem ter sido considerado inovadores, como Hilbert. Este capítulo integra de forma notável os conhecimentos de Lógica e faz uma aproximação efectiva à tao propalada interdisciplinaridade, com recurso a demonstrações matemáticas. São apresentados sucintamente autores como Claude Bernard, Stuart Mill, Leibniz, Kant, Descartes, Comte. A secção de epistemologia da História não destoaria em qualquer manual do ensino secundário. A secção sobre ética estabelece – e muito bem – a relação entre as teorias hedonistas e utilitaristas, chamando a estas últimas “a doutrina moral dos filósofos ingleses”. Do lado da”moral racional” são apresentados Aristóteles, Kant e São Tomás. Este capítulo termina com a determinação do conceito de Bem de acordo com a moral cristã. A mesma linha segue o capítulo sobre a moral prática, com claras concessões ao catolicismo. O capítulo sobre arte é notoriamente marcado pelos filósofos francófonos, como Étienne Souriau e Nédoncelle. A Filosofia da religião não chega a discutir a existência de Deus: são fornecidas “provas” da existência de Deus sem contraditório ou discussão dos argumentos.

Por fim: o livro quase não contém citações ou textos de autor. Mesmo assim, e apesar das tendências políticas e religiosas que manifesta, é historicamente interessante. Conseguiriam os nossos alunos ser aprovados à disciplina com este manual ? O que diz o leitor?

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8 Comments

  1. Augusto Saraiva foi meu professor de Filosofia na década de 1950. Era um excelente mestre: obrigado a utilizar o manual do Bonifácio, levava os alunos a reflectir criticamente sobre ele. Perdi o seu livro “Filosofia”, que ele me ofereceu com dedicatória. Gostaria de encontrar um exemplar.

    Valentim Alexandre

  2. Provavelmente conseguirá encontrá-lo se se dirigir a um alfarrabista. Trata-se de um livro relativamente comum. A mim não me foi difícil encontrar um exemplar, mas talvez tenha tido apenas sorte…

  3. Gostaria de obter o livro Reflexões sobre o Homem, do Professor Augusto Saraiva, mas não o encontrei à venda no Brasil. Mas há um exemplar no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

  4. Gostaria de obter um exemplar do livro Reflexões sobre o Homem, do professor Augusto Saraiva. Não o encontrei à venda no Brasil. Mas encontrei um exemplar disponível para consulta no Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro.

  5. Tenho comigo um exemplar. Melhor se não podia esperar. Vem servindo às minhas aulas em Angola, enquanto professor. Com base nele tenho preparado um manual para propor ao Ministério da Educação. Uma linguagem mestre e uma didáctica de excelência. Serviu-me à minha formação desde o ensino Médio ao Superior, pois, me formei, igualmente, em Filosofia. Os alunos, desde que dados à leitura aturada, podem aprender muito com ele. Certo é, que aí não se esgotam os grandes temas filosóficos, mas são abordados os fundamentais, e de modo douto.

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