2.1 Competências específicas da Filosofia: um problema metafilosófico?

2.1 Competências específicas da Filosofia: um problema metafilosófico?

 

Resolvido o problema da ensinabilidade da filosofia, será necessário determinar o que se ensina. Para tal, apresentaremos neste capítulo a forma como os filósofos responderam ao longo da História a esta questão, organizando-os, no presente, na correspondente discussão metafilosófica.

O modelo matricial do filósofo é um dos seus mais dignos e célebres representantes: Sócrates.

 

Ora, é possível que alguém pergunte: – Sócrates, não poderias tu viver longe da pátria, calado e em paz? Eis justamente o que é mais difícil fazer aceitar a alguns dentre vós: se digo que seria desobedecer ao deus e que, por essa razão, eu não poderia ficar tranquilo, não me acreditaríeis, supondo que tal afirmação é, de minha parte, uma fingida candura. Se, ao contrário, digo que o maior bem para um homem é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, examinando a mim mesmo e aos outros, e, que uma vida sem esse exame não é digna de ser vivida, ainda menos me acreditaríeis, ouvindo-me dizer tais coisas. Entretanto, é assim, como digo, ó cidadãos, mas não é fácil torná-lo persuasivo. (Platão, Apologia de Sócrates)

 

Na “Apologia de Sócrates”, Platão mostra como o filósofo deve ser alguém capaz de procurar o verdadeiro conhecimento, rejeitando a simples opinião, e consciencializando-se da sua própria ignorância, o que faria dele um homem mais sábio que todos os outros. Sócrates é apresentado como um educador da polis, “pela incansável denúncia das ideias feitas e dos preconceitos e pelo exame crítico de si mesmo e dos outros, tarefa prioritária da genuína dignidade humana (Maria José Vaz Pinto, 2013, p. 14). Temos, então, Sócrates apresentado como o modelo do filósofo, aquele que ama a sabedoria e cuja virtude é o exercício da razão e da excelência. Uma vida sem filosofar, sem o exercício do pensamento crítico, seria uma vida indigna de ser vivida. Esse pensamento crítico exerce-se através de um método dialógico: a ironia e a maiêutica, sendo a arte de interrogar o fulcro do diálogo.

Também Aristóteles vê o filósofo como um sábio. “A filosofia é para o Estagirita a ciência mais apropriada ao ensino, aquela que mais educa, exatamente porque aprofunda as causas das coisas, possibilitando ao filósofo um conhecimento mais universal, que ultrapassa o senso comum e o conhecimento sensível.” (Joana Pereira Marques, 2013, p. 19)

 

“A mais elevada das ciências, e superior a qualquer subordinada, é, portanto, aquela que conhece aquilo em vista do qual cada coisa se deve fazer. E isto é o bem em cada coisa e, de maneira geral, o ótimo no conjunto da natureza. Resulta portanto de todas estas considerações que é a esta mesma ciência que se aplica o nome que procuramos. Ela deve ser, com efeito, a [ciência] teorética dos primeiros princípios e das causas, porque o bem e o «porquê» são uma das causas. Que não é uma [ciência] prática resulta [da própria história] dos que primeiro filosofaram. Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua, as do Sol e dos astros e a gênese do Universo. Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso, também quem ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso. Pelo que, se foi para fugir à ignorância que filosofaram, claro está que procuraram a ciência pelo desejo de conhecer, e não em vista de qualquer utilidade. Testemunha-o o que de fato se passou. Quando já existia quase tudo que é indispensável ao bem-estar e à comodidade, então é que se começou a procurar uma disciplina deste gênero. É pois evidente que não a procuramos por qualquer outro interesse mas, da mesma maneira que chamamos homem livre a quem existe por si e não por outros, assim também esta ciência é, de todas, a única que é livre, pois só ela existe [por si].” (Aristóteles, Metafísica)

 

Para Aristóteles, a filosofia permite-nos ter uma vida virtuosa, pois é ela que nos conduz à sabedoria. Por esse motivo, a filosofia é um fim em si mesma, pois legitima-se a si própria. Ela começa com o espanto, com a admiração, permite-nos educar o cidadão, que só será feliz se desenvolver as suas capacidades, e consiste em problematizar aquilo que antes parecia evidente.

Encontramos aqui várias ideias que têm sido constantes: não é tanto a definição de filosofia como “espanto”, é muito mais a filosofia como atividade de problematização e de instrumento de formação cívica para o cidadão, o homem da polis.

 

A Idade Média representa um ponto de viragem significativo na história da filosofia, muitas vezes subjugada à Teologia e à exegese das Escrituras, e com uma orientação religiosa.

Agostinho de Hipona via na interiorização a possibilidade de o Homem encontrar a verdade, a transcendência, o que configura alguma reminiscência platónica. As verdades imutáveis estão no interior do próprio homem:

 

“Trata-se de ideias que o Homem encontra em si e que lhe são superiores, que pertencem ao reino inteligível, e que tal como para Platão, surgem como o verdadeiro objeto de conhecimento, ideias de ordem lógica e metafísica, verdade, falsidade, semelhança, unidade); as ideias de ordem matemática (número, figuras); e as ideias de ordem ética e estética (bem, mal, beleza). (…) A questão que se coloca agora é como é o Homem capaz de conhecer as ideias? Santo Agostinho enuncia, assim, a teoria da iluminação, segundo a qual a alma conhece as verdades imutáveis por iluminação divina.” (Joana Gameiro, 2013, p. 55)

 

Assim sendo, para Agostinho de Hipona a função da palavra, da linguagem, é de permitir a rememoração, mas não o ensino; é apenas o meio pela qual os sons das palavras do professor permitem ao aluno aceder à rememoração dos conhecimentos que já possui. Portanto, ao professor cabe apenas o papel de orientador, aquele que ajuda o aluno a descobrir dentro de si próprio a verdade e o conhecimento. O método eleito para tal procedimento pedagógico é a maiêutica socrática, conduzindo o aluno ao seu interior através de sucessivas interrogações.

 

“AGOSTINHO – Proclamam acaso os professores que se aprenda e fixe o que eles pensam, e não as doutrinas mesmas, que eles julgam comunicar falando? Pois quem será tão estultamente curioso que mande o seu filho à escola, para que ele aprenda o que o professor pensa? Ora depois de terem [os professores] explicado por palavras todas essas doutrinas, que declaram ensinar, incluindo a da virtude e a da sapiência, então aqueles que são chamados discípulos consideram consigo mesmos se se disseram coisas verdadeiras, e fazem-no contemplando, na medida das próprias forças, aquela Verdade interior de que falamos. É então que aprendem.” (Santo Agostinho, O Mestre)

 

São Boaventura, nascido Giovanni di Fidanza, acentua a necessidade das tarefas exegéticas.

 

And, bearing on this: If a man is to make his way securely in the forest of the Scripture, cutting through it and opening it out, it is necessary that he first have acquired a knowledge of Scriptural truth in its explicit statements. That is, he should note how Scripture describes the origin, course, and final fate of the two groups, like armies in confrontation: the good who humble themselves in this world but will be exalted forever in the next, and the wicked who exalt themselves in this world but will be cast down forever in the next. Scripture, then, deals with the whole universe, the high and the low, the first and the last, and all things in between. It is, in a sense, an intelligible cross41 in which the whole organism of the universe is described and made to be seen in the light of the mind. (São Boaventura, Breviloquium)

 

Filipa Afonso (2013) assinala que

 

“As considerações do mestre da Universidade de Paris sobre o ensino de Teologia podem, sem dificuldade, ser transpostas para o ensino da filosofia. O primado da leitura, defendido por São Boaventura, implica a “fundamentação racional das interpretações feitas (…); por analogia, a leitura de textos fundamentais de filosofia constitui não apenas um método para aprender filosofia, (…) mas um método para aprender a filosofar (Afonso, 2013, p. 64).

 

A ser assim, o professor é sobretudo um hermeneuta, cuja principal tarefa é a exegese dos textos para desvelar as verdades neles contidas. Deste modo, filosofar é, fundamentalmente, interpretar, pelo que ao longo da Idade Média nos afastamos consideravelmente da perspetiva argumentativa de Sócrates e da função cívica que Aristóteles atribuía à filosofia.

 

É já em plena Idade Moderna que René Descartes introduz alguns conceitos relevantes na história do ensino da filosofia: em “Princípios da Filosofia” enuncia um conjunto de regras (evidência, análise, síntese e enumeração) que permitirão a todo o aprendiz de filósofo a conduzir a razão na busca da verdade. Note-se a prevalência das categorias operatórias de análise e síntese, já anteriormente referidas a propósito de Bloom e Boavida.

Na Carta-Prefácio que Descartes dirige ao tradutor para francês da obra originalmente publicada em latim, lê-se

 

“Primeiramente, queria explicar (…) o que é a Filosofia, começando pelas coisas mais vulgares, como são: que esta palavra Filosofia significa o estudo da Sabedoria, e por estudo da Sabedoria entende-se não apenas a prudência nos negócios, mas um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber, tanto para a conduta da sua vida, como para a conservação da saúde e a invenção de todas as artes; e a fim de que este conhecimento seja tal é necessário começar pela investigação destas primeiras causas (…) Seguidamente, farei ver a utilidade desta Filosofia e mostrarei que, dado que ela se estende a tudo aquilo que o espírito humano pode saber, devemos crer que é ela que nos distingue dos mais selvagens e bárbaros e que cada nação é tanto mais civilizada e polida quanto nela melhor filosofarem os homens; e que, por isso, o possuir verdadeiros filósofos é o maior bem que pode existir num Estado. (…) Viver sem filosofar é propriamente como ter os olhos fechados sem nunca se esforçar por abri-lo; e o prazer de ver todas as coisas que a nossa vista descobre não é comparável com a satisfação que dá o conhecimento daquelas coisas que se descobrem por meio da Filosofia. (Descartes, 1995)

 

Com Descartes, a filosofia volta a orientar-se para a sabedoria, mas também para a conduta moral e cívica, permitindo destrinçar os selvagens dos homens civilizados, conduzindo-nos a uma forma de prazer – o prazer intelectual.

É em Espinosa que surge, talvez pela primeira vez de forma premente, a tensão ensinar versus investigar. Essa distinção interessa-nos porque, no último capítulo, proporemos ferramentas de investigação para o professor do século XXI. Em resposta a um convite para lecionar em Heidelberg (Epístola XLVII, de Fabritius, Professor da Academia de Heidelberg, a Espinosa), expressa a antinomia entre filosofar e investigar: “em primeiro lugar, penso que deixaria de promover a filosofia se me dedicasse ao ensino da juventude; teria que renunciar à prossecução dos meus trabalhos filosóficos”. Maria Luísa Ribeiro Ferreira (2013, p. 105) afirma que

 

“Certamente que todo o professor de filosofia se questiona sobre a exigência de um ensino verdadeiramente filosófico no qual não se pode limitar a transmitir o que os filósofos disseram devendo sim obrigar os alunos a pensar com eles e/ou contra eles. Há que transpor o primeiro momento, de conhecimento e reconstituição de teses e conceitos, momento imprescindível por possibilitar a passagem a um patamar seguinte que é o da apropriação. Nele estabelecemos sintonia com os filósofos, verificando até que ponto nos interpelam e até que ponto deles somos devedores (…).”

 

Kant defenderá que apenas é possível filosofar, mas não ensinar filosofia.

 

“Em suma, o entendimento não deve aprender pensamentos mas a pensar. Deve ser conduzido, se assim nos quisermos exprimir, mas não levado em ombros, de maneira a que no futuro seja capaz de caminhar por si, e sem tropeçar. A natureza peculiar da própria filosofia exige um método de ensino assim. Mas visto que a filosofia é, estritamente falando, uma ocupação apenas para aqueles que já atingiram a maturidade, não é de espantar que se levantem dificuldades quando se tenta adaptá-la às capacidades menos exercitadas dos jovens. O jovem que completou a sua instrução escolar habituou-se a aprender. Agora pensa que vai aprender filosofia. Mas isso é impossível, pois agora deve aprender a filosofar. […] O método de instrução próprio da filosofia é zetético, como o disseram alguns filósofos da antiguidade. Por outras palavras, o método da filosofia é o método da investigação.” (Kant, 1765)

 

Este método para ensinar filosofia, diz Difante, é erotemático:

 

“No final do Manual dos cursos de lógica geral (1800), ele procede definindo quais seriam os métodos (de ensino) mais adequados, tanto na elaboração dos conhecimentos, quanto no trato dos mesmos. Dentre “As diversas divisões do método”, o mais adequado à filosofia seria, pois, o método “erotemático” (Erotematisch), que pede por reflexão, pois é o método de alguém que, além de ensinar, também interroga (frägt). Segundo a perspetiva kantiana, somente é possível filosofar, envolvendo-se de fato com a filosofia, porque ela é uma disciplina diferente das demais.” (…) Kant identifica o método de instrução próprio da filosofia como Zetético. Em outras palavras, é o método baseado na investigação. Entretanto, a partir do Manual dos cursos de Lógica geral, pode-se inferir que este método pode ser também “erotemático dialógico”, sem que, com isso, possa haver contradição alguma. Posto que, o primeiro baseia-se na investigação filosófica e o segundo no diálogo socrático.” (Difante, s/d)

 

De certo modo, Kant comunga dos ideais de Comenius, Rousseau, Russell, Agostinho e, como mais à frente veremos, António Sérgio, pois o seu projeto de Aufklarung é “profundamente marcado por um impulso pedagógico” (Santos, 2013, p. 126).

Encontramos em Kant uma preocupação pedagógica, que é também antropológica, que consiste na pretensão de elevar, educar o ser humano num processo histórico e teleológico. A própria racionalidade humana está inserida no plano teleomórfico da natureza, sobre o qual o homem “tem de pensar e presumir como possível, como constituindo o horizonte mesmo da realização e expressão da sua humanidade e, em particular, da razão” (Santos, 2013, p. 127)

Temos apresentado alguns filósofos que discutem a utilidade ou finalidade de um ensino de filosofia, mas, antes de Kant, é em Wolff que encontramos interesse pelo método de ensinar filosofia.

 

“O que Wolff propriamente propõe não é a transposição do método da Matemática para a Filosofia, mas antes afirma a identidade originária destas ciências, a qual, em última instância, se funda na Lógica que lhes é comum, enquanto disciplinas racionais que são. [Encontramos em] Wolff não apenas a convicção de que a Lógica é uma propedêutica ou um instrumento da ciência, mas que ela constitui a própria essência da razão: a Lógica é a filosofia da razão.” (Santos, 2013, p. 131)

 

Contudo, Kant não subscreveria esta ideia de Wolff.

 

“Pelo menos desde 1763, um dos alvos privilegiados da crítica de Kant ao wolffianismo incide neste ponto: a ilusão de que a Metafísica se reduz a uma matemática de conceitos racionais ou a uma lógica e de que a filosofia pode imitar o procedimento do matemático ou do lógico. Constitui significativa conquista de Kant o ter desmontado o pressuposto da identidade das duas disciplinas e a ideia segundo a qual a filosofia deve imitar a matemática.” (Santos, 2013, p. 131)

 

Mas qual é, então, o método da filosofia?

 

“O método próprio da filosofia não é, pois, o sintético, por construção de conceitos, como na matemática e na geometria, mas é um método analítico. O filósofo não pensa fabricando ou construindo conceitos, mas pensa por meio de conceitos que lhe são dados no uso da razão e cujo sentido, alcance e intencionalidade deve antes de mais tentar averiguar.” (Santos, 2013, p. 131)

 

Portanto, Kant considera que, mais do que aprender filosofia, é necessário aprender a filosofar, conceção esta que é essencialmente investigativa e inventiva. A filosofia, deste ponto de vista, exige uma pedagogia inspirada no método socrático, através da qual o professor age como um parteiro de pensamentos.

 

Diferentemente, Hegel defendia a importância de aprender filosofia. Hegel tem da filosofia uma visão hermenêutica, mas entra em confronto com Kant ao considerar que a filosofia pode ser aprendida e ensinada. Serrão (2013, p. 149) assinala que

 

“Hegel repudia (…) o mito da espontaneidade original do indivíduo que naturalmente e sem qualquer orientação estaria em condições de produzir imediatamente juízos e raciocínios verdadeiros. Assim como o pensar sem objeto não é pensar, começar a filosofar sem fazer filosofia é o mesmo que não filosofar”. (Serrão, 2013)

 

E, acrescenta Serrão, Hegel propõe mesmo um itinerário, uma sequência pedagogicamente estruturada: partir da experiência vivida e dos conhecimentos práticos do aluno, abstrair com conceitos da psicologia e da lógica; proceder a uma síntese desses conceitos “como uma massa de conceitos plena de conteúdo”.

Em “O Ensino Da Filosofia Segundo Hegel: Contribuições Para A Atualidade”, Novelli (2006) considera que

 

“Segundo Hegel, a filosofia sempre é pertinente na medida em que se manifesta sobre o que é fundamental para o homem, isto é, sobre sua vida com as questões que lhe dizem respeito. (…) Conhecer a história da filosofia já é aprender filosofia, mas tal aprendizagem necessita da mediação do professor. A mediação se faz necessária, pois a aprendizagem não é natural e, portanto, não se dá espontaneamente. Aprender é sempre aprender com alguém.” (Novelli, 2006, p. 129)

 

Este papel de mediação é importante, pois é dessa forma que o aluno entra em contacto com a cultura antiga e lhe abre caminho para o exercício da hermenêutica.

 

“Insiste-se ainda de modo particular no papel indispensável que a sabedoria antiga exerce no desdobramento da formação do espírito, pois a cultura greco-romana é um depósito sagrado e vivo, a propósito da qual o filósofo expõe o significado insubstituível da “mediação”, com tanto relevo na sua visão filosófica e com tamanhas consequências na futura hermenêutica.” (Morão, 1989, p. 4)

 

Numa carta dirigida ao real conselheiro prussiano Friederich von Raumer, Hegel (appud Novelli) refere que o local mais adequado para o ensino da filosofia é a universidade pois só

 

“Aí se pode esperar e exigir dos alunos determinadas posturas que somente a maturidade proporciona. Tal maturidade deve permitir o exercício da paciência e da demora sobre o conceito para que o todo seja alcançado e o real, por sua vez, verdadeiramente compreendido” (Novelli, 2005, p. 130)

 

Em 1812, Hegel escreve “O Ensino Da Filosofia Nos Ginásios”, um “Parecer privado para o Real Conselheiro Superior da Baviera, Immanuel Niethammer”, carta na qual determina a sequência dos estudos académicos: Direito, Moral e Religião, estrutura acerca da qual tece o seguinte comentário:

 

“Se alguém perguntar se este objecto de ensino será conveniente para constituir o início da introdução à filosofia, só poderei responder afirmativamente. Os conceitos destas doutrinas são simples e possuem ao mesmo tempo uma especificação, que os torna inteiramente acessíveis à idade desta Classe; o seu conteúdo é apoiado pelo sentimento natural dos alunos, possui uma realidade efectiva no íntimo dos mesmos, pois é o lado da própria realidade interior; para esta Classe, prefiro de longe este objecto de ensino à Lógica, porque esta tem um conteúdo mais abstracto e, sobretudo, mais afastado da imediata realidade efectiva do íntimo, um conteúdo meramente teórico. ” (Morão, 1989, p. 5)

 

Esta tensão entre ensinar filosofia ou ensinar a filosofar é estruturante da forma como entendemos o ensino da filosofia, ainda que possa parecer ter uma resposta simples:

 

“A tese que sustentamos é a de que é preciso imbuir o aluno de uma perspectiva filosófica crítica, possível apenas quando se aprende a filosofar; mas, é necessário também apresentar o lado sistemático que se traduz pela apreensão de conteúdos escolásticos firmados nos diversos sistemas filosóficos da história da filosofia, momento em que se aprende os conteúdos da filosofia de um determinado filósofo ou de um sistema. Kant e Hegel retratam essa dupla perspectiva. A produção filosófica destes pensadores traduz a possibilidade seja de uma filosofia crítica que nos incita a aprender a filosofar (Kant), seja de um saber sistemático que nos estimula a aprender a filosofia (Hegel).” (Ramos (2007)

 

Se Kant aponta para um exercício efetivo das competências filosóficas, Hegel remete-nos para uma postura pelo menos aparentemente mais passiva, dedicada à interpretação dos textos. Assim entendida, a aprendizagem da filosofia terá de ser feita através da história da filosofia, exigindo-se que o professor e os textos constituam a mediação entre o aprendiz o conhecimento filosófico. O papel do aprendiz torna-se, então, de algum modo secundário. Esse papel menor seria secundado, na contemporaneidade, por Heidegger.

As conceções de Heidegger quanto ao ensino da filosofia remetem-nos para uma heterodoxia do pensar, em que o exemplo do professor é essencial para a condução dos alunos. Heidegger, como sabemos, insere-se numa perspetiva fenomenológica e hermenêutica que assume que a filosofia deve ser cultivada sem abdicar da sua tradição histórica (Borges-Duarte, 2013, p. 225). Isso não implica que o filosofar se restrinja à enumeração dos filósofos ao longo da história, pois possuir conhecimentos sobre filosofia é apenas uma condição útil mas que pode conduzir à ilusão de que já constitui a própria capacidade de filosofar. Uma introdução à filosofia é uma tarefa de desconstrução daquilo que é aparente, banal[1], óbvio, de forma a conduzir o aluno até à verdade. Esse é um exercício hermenêutico e, em simultâneo, ontologicamente inerente ao ser humano.

 

“Ser humano significa já filosofar. O Ser-aí (Dasein) humano, enquanto tal, está já na filosofia. Mas porque o ser humano tem diversas possibilidades, muitos níveis e graus de estar-desperto, pode também o homem estar na filosofia de diferentes maneiras. E, correlativamente, a filosofia enquanto tal pode permanecer encoberta ou assomar no mito, na religião, na poesia ou nas ciências, sem ser reconhecida enquanto filosofia. Mas, uma vez que a filosofia enquanto tal pode desenvolver-se explicitamente e por si própria, quem não participe explicitamente do filosofar parece estar fora da filosofia” (Hegel, appud Borges-Duarte, 2013, pp. 228-229)

 

Consequentemente, a filosofia não é algo que seja naturalmente exercido por todos nós, ainda que faça parte de nós. É necessário introduzirmo-nos na filosofia, desvelá-la, e para tal é essencial o papel deflagrador do professor.

 

“O papel do magistério, na sua exemplaridade, consiste, justamente, em pôr a caminho e libertar as possibilidades abertas pelo pensar e tal deve ser entendido como um privilégio, pois compete ao professor de filosofia introduzir a disciplina de tal forma que possa “realizar a sua essência na comunidade, como aquilo para que está vocacionada: o caráter exemplar, no saber, na modalidade de vínculo com as coisas e com outrem.” Borges-Duarte, 2013, p. 234)

 

Entendida como metodologia de trabalho filosófico, a hermenêutica é a arte da interpretação, que em Espinosa[2] deve corresponder ao padrão da exegese bíblica, algo já visto em Boaventura e Agostinho de Hipona. A hermenêutica implica não apenas a análise gramatical, do sentido, mas também a análise histórica. Trata-se não apenas de buscar o significado das palavras e frases no texto, mas também o “conhecimento histórico da vida do autor, da história e da geografia do seu país” (Inwood, 2007).

Também para Foucault, um dos autores pós-modernos, a hermenêutica é a marca essencial da filosofia. Portanto, este autor insere-se de algum modo na linha de pensamento de Heidegger.

 

“(…) Tendo a filosofia uma função essencialmente onto-etho-poetica, o uso que dela deve ser feito é umas askêsis (o exercício de si, no pensamento), pelo que também toda a tarefa hermenêutica é um apoderar-se do sentido, pela força ou pela manha.” (Arêdes, 2013, p. 337)

 

Ainda em França, em “O que é a filosofia?”, Gilles Deleuze e Félix Guattari, dois filósofos do pós-modernismo, traçam uma definição do que é a atividade filosófica e quais as suas principais finalidades.

 

Simplesmente chegou a hora, para nós, de perguntar o que é a filosofia. Nunca havíamos deixado de fazê-lo, e já tínhamos a resposta que não variou: a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. (Deleuze & Guatari, 1992, p. 10)

 

O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. Esta conceção de filosofia remete-nos diretamente para uma hermenêutica que não deixa de ser criativa, conforme assinala Deleuze:

 

O conceito define-se por sua consistência, endo-consistência e exo-consistência, mas não tem referência: ele é auto-referencial, põe-se a si mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo que é criado. O construtivismo une o relativo e o absoluto. (…) Enfim, o conceito não é discursivo, e a filosofia não é uma formação discursiva, porque não encadeia proposições. É a confusão do conceito com a proposição que faz acreditar na existência de conceitos científicos, e que considera a proposição como uma verdadeira “intensão” (o que a frase exprime): então o conceito filosófico só aparece, quase sempre, como uma proposição despida de sentido. Esta confusão reina na lógica, e explica a ideia infantil que ela tem da filosofia. Medem-se os conceitos por uma gramática “filosófica” que os substitui por proposições extraídas das frases onde eles aparecem: somos restringidos sempre a alternativas entre proposições sem ver que o conceito já foi projetado no terceiro excluído. O conceito não é, de forma alguma, uma proposição, não é proposicional, e a proposição não é nunca uma intensão. (…) Os conceitos, que só têm consistência ou ordenadas intensivas fora de coordenadas, entram livremente em relações de ressonância não discursiva, seja porque os componentes de um se tornam conceitos com outros componentes sempre heterogêneos, seja porque não apresentam entre si nenhuma diferença de escala em nenhum nível. Os conceitos são centros de vibrações, cada um em si mesmo e uns em relação aos outros. (…) O construtivismo exige que toda criação seja unia construção sobre um plano que lhe dá uma existência autônoma. Criar conceitos, ao menos, é fazer algo. A questão do uso ou da utilidade da filosofia, ou mesmo de sua nocividade (a quem ela prejudica?), é assim modificada. (Deleuze & Guatari, 1992, p. 13)

 

 

Então, afirmam os autores, à Filosofia cabe o espanto perante a realidade e a criação de conceitos que permitam uma nova intelecção dessa mesma realidade.

 

O pós-modernismo acabaria por ser contestado por alguns filósofos, como foi o caso de John Searle. Em “Racionalidade e realismo: o que está em jogo?”, Searle apresenta a racionalidade e objetividade que tradicionalmente orientam o ensino nas universidades, em contraste com um ensino relativista pós-moderno, política e ideologicamente comprometido. Searle isenta a filosofia destas influências pós-modernas, algo de que Pedro Galvão discorda:

 

“Não partilho da apreciação optimista de Searle. Penso que também o ensino da filosofia (…) tem estado sujeito a uma instrumentação ideológica considerável. [Na ética] tem-se verificado com alguma frequência o fenómeno que Searle descreve perspicazmente como a passagem de um domínio a investigar (imparcial e objetivamente) a uma causa política ou moral a promover. (…) A bioética, por exemplo (…) por vezes transforma-se numa atividade ao serviço da «inviolabilidade da vida humana». (…) E a chamada ética animal, que se ocuparia de questões sobre a importância moral dos animais não-humanos, por vezes apresenta-se como algo indissociável do ativismo em prol dos direitos dos animais.” (Galvão, 2013, p. 362)

 

Ora, como refere este autor, se também em filosofia confundirmos a investigação objetiva com o compromisso ideológico, então já estaremos a ensinar outra coisa que não filosofia – não estaremos a pensar filosoficamente, mas apenas a permitir a instrumentalização da filosofia por organizações políticas ou ideológicas, independentemente de tais causas serem de facto nobres ou edificantes.

 

Constata-se que se foi configurando, ao longo dos tempos, uma distinção entre aqueles para quem a filosofia é uma atividade crítica, argumentativa, e os que defendem que a hermenêutica, a interpretação, constituem a base do pensar filosófico. Esta distinção interessa-nos porque a definição de competências operatórias em filosofia acabará por estar ancorada nestas conceções metafilosóficas. Recordemos: Sócrates e Aristóteles são autores que veem no filósofo o “educador da polis“, em Kant encontramos uma preocupação antropológica que vai ao encontro de uma Filosofia que é também uma atividade de investigação, Wolff concede especial lugar à Lógica e Searle alerta para os perigos do relativismo da filosofia pós-moderna; também vimos Agostinho de Hipona e Boaventura atribuírem à Filosofia uma atividade de exegese e Hegel a acentuar esta tendência hermenêutica, tal como Foucault e os autores da pós-modernidade francesa. Configuram-se duas tendências gerais: o primado da argumentação e o primado da interpretação, sem pretendermos instaurar qualquer disjunção exclusiva. É possível aproximar estas duas tendências gerais de duas metafilosofias: a filosofia analítica e a filosofia continental. Tal contraposição permitir-nos-á lançar uma nova luz sobre os antigos e atuais programas de filosofia no ensino secundário e será um contributo essencial para determinar as competências filosóficas que estão implícitas ou explícitas no ensino de Filosofia.

O fulcro da distinção entre ambas as metafilosofias é a metodologia, isto é, o foco na análise ou na síntese. Os filósofos analíticos tendem a analisar o pensamento, a linguagem, a lógica, e fazem-nos resolvendo os problemas filosóficos pela decomposição dos itens nas suas partes constituintes, enquanto os continentais optam por fazer a síntese entre a modernidade e a História, o indivíduo e a sociedade, e fazem-no tentando integrar cada parte no todo que lhe corresponde. A filosofia analítica é uma atividade de “resolução de problemas” enquanto a filosofia continental se aproxima mais da tradição humanista, da literatura e da arte. Dentro da tradição analítica podemos encontrar filósofos como Hilary Putnam, John Searle, John Rawls, enquanto que na tradição continental encontramos Hegel, Heidegger, Husserl, Foucault, Sartre, Derrida, Deleuze, Lyotard, para citar nomes já referenciados anteriormente. Na verdade, a referência à tradição “continental” é algo vaga, pois abrange correntes como a fenomenologia, o desconstrucionismo, o existencialismo e o pós-modernismo. Por seu lado, a “filosofia analítica”, que teve início, historicamente, com o “Círculo de Viena”, já não corresponderá hoje às mesmas caraterizações que se poderiam fazer há um século.

Jones distingue as duas tradições também com base na metodologia, com foco na análise ou na síntese. Enquanto os filósofos analíticos tendem a resolver problemas filosóficos bem definidos, decompondo-os nas suas partes constituintes, os filósofos continentais abordam questões de forma sintética ou integradora. Isto é, opõe a análise do pensamento, da linguagem e a lógica à síntese da história, dos indivíduos e da sociedade. A filosofia analítica seria então uma atividade de resolução de problemas enquanto a filosofia continental se aproxima mais da tradição das artes e da literatura, sendo politicamente mais comprometida. A ser assim, temos duas metafilosofias que traçam caminhos pedagógicos diferentes:

 

This reveals that these two camps are clearly divergent in emphasis and have different places in philosophy. They have different trajectories, motives, goals, and tools, and must be understood in light of their independent and differing traditions. (Jones, 2009)

 

Talvez o ideal seja combinar os pontos mais fortes de ambas as tradições, unindo o poder da lógica à importância da tradição histórica, fazendo uma síntese dos respetivos métodos e trajetórias. Será isso possível? Jones pensa que sim:

 

What are we to do with analytic and continental philosophy, then? Neil Levy makes a great and simple wish when he writes that we “could hope to combine the strengths of each: to forge a kind of philosophy with the historical awareness of continental philosophy and the rigor of analytic philosophy.” (Metaphilosophy, Vol. 34, No.3.) If we are to keep a balance, we must understand that both camps have methods, trajectories, and emphasis that can be honored and incorporated into a synthesis. (…) Analytic philosophy should be able to enter into phenomenology, existentialism, literature, and politics with the same enthusiasm as continental philosophy. It should also realize that philosophy is not without a history; philosophy is a historical movement which tackles social and political questions as well as more technical problems of logic and epistemology. To assume that analytic philosophy is above the social and historical currents of its time is to canonize a golden calf and ignore the wider reality. Similarly, the average person may not care about answering the Problem of Induction or the Liar Paradox, but may wonder what life, existence, and history means to her. She may be questioning her political situation or her place within society, and to presume that what she’s asking are not philosophical questions belittles the scope of philosophy.  Continental philosophy may have some things to learn as well. It might need to realize that all reasoning must assume that logic is meaningful and necessary; that language is intricately connected with our ability to convey meaning, and that epistemology is one of the most crucial areas to investigate: whenever we are making assertions or expounding propositions we act as if our ability to know is correct and justified. It seems obvious that existence and Being are vital to philosophy, yet analytic philosophers might ask how we know that to be true. Continental philosophy may be forgetting those basics necessary for intelligible experience. Science, logic, and the analysis of language are not the only things that matter, but neither are literature, art, and history. (Jones, 2009)

 

Em Portugal, esta discussão não passou ao lado dos professores portugueses. Desidério Murcho aponta as diferenças entre ambas e as suas implicações sobre o currículo da disciplina no ensino:

 

Toda a gente conhece a filosofia continental: foi o que nos ensinaram e continuam a ensinar no liceu, é o que se ensina nas universidades e a maior parte dos livros e revistas de filosofia são de perfil continental. Uma das características que distinguem a forma analítica de fazer filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa, baseia-se na diferente posição que tomam em relação à exegese filosófica. Ao passo que para os continentais a exegese filosófica não se distingue da simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da formulação, identificando com esta última o sentido da expressão ‘exegese filosófica’ mas não com a primeira. (Murcho, s/d)

 

Claro que o facto de escolhermos uma metafilosofia, ou preferirmos uma metafilosofia, não significa que não possamos igualmente ler, investigar, divulgar ou ensinar dentro de outra metafilosofia. O que deve ficar claro é que cada professor, quando exerce a sua função social enquanto docente, saiba em que metafilosofia se inscreve, onde situar os conteúdos e, implicitamente, as estratégias didáticas que terá de utilizar, se quiser ser coerente.

A importância da opção por uma metafilosofia é evidenciada nos programas e nos manuais escolares do ensino secundário, e consequentemente nas metodologias de trabalho utilizadas, pois podemos estar perante competências que não são equivalentes.

Os programas de filosofia de 10.º, 11.º e 12.º anos remetem (in)diretamente para alguns filósofos representativos destas duas metafilosofias. Nem sempre tais filósofos são referenciados explicitamente, como no item “A rede conceptual da ação”, de inspiração clara em Paul Ricoeur, mas nas “Orientações para efeitos de avaliação sumativa externa das aprendizagens” essas referências são mais claras. De uma forma algo simplista, podemos afirmar que encontramos filósofos “continentais”, como Ricoeur, Husserl, Marx, Nietzsche, Arendt e Heidegger, e filósofos “analíticos” como Rawls, Gettier, Popper, Russell nos atuais programas de filosofia. Uma análise dos manuais disponíveis no mercado permite detetar influências ou posicionamentos metafilosóficos bastante claros. Vejamos o caso do manual “Essencial – Filosofia 10.º”, de Amândio Fontoura e Mafalda Afonso: os textos selecionados são bastante ecléticos, com uma clara incidência historicista, com abundantes citações de Aristóteles, e os autores de referência para a explicação dos conteúdos do programa são, entre outros, Deleuze, Sartre, Heidegger, Marx, Ricoeur, Hans Jonas, etc. No Manual “Filosofia 10.º” de Faustino Vaz e Luís Veríssimo encontramos uma clara incidência na Lógica, estando os conteúdos estruturados em torno de problemas, teses, argumentos e objeções, e referências a autores como Richard Swinburne, Simon Blackburn, Robert Nozick, Thomas Nagel, Kurt Baier, etc. No manual “Ousar Saber” do 11.º ano, de João Simas, Luís Salvador, Adelino Cardoso, Artur Morão, André da Silva Costa e José Manuel Moreira, encontramos autores como Jean Piaget, Johannes Hessen, Jean-Paul Sartre, Paul Valéry, Werner Jaeger, Edgar Morin. Por seu lado, o manual “50 Lições de Filosofia” do 11.º ano, de Aires Almeida e Desidério Murcho, referencia Colin McGinn, Edmund Gettier, Saul Kripke. Esta breve análise em nada questiona a qualidade de cada um dos manuais, mas apenas pretende realçar a aproximação metafilosófica operada pelos respetivos autores; consequentemente, daqui se extrai que, sendo o manual a principal fonte de autoaprendizagem para o aluno e o recurso primordial para o professor, a sua adopção numa qualquer escola terá necessárias consequências sobre a abordagem metafilosófica predominante, sem prejuízo da abundância de outras opções nos recursos indicados.

Naturalmente, isto tem consequências quanto à didática específica da disciplina pois, como vimos na resenha histórica sobre como os filósofos percecionam o ensino de Filosofia,

 

Consequentemente, após estas considerações metafilosóficas, será que o ensino da filosofia serve para alguma coisa? Serve para interpretar? Serve para aprender a argumentar? E não estaremos demasiado habituados a pensar que a filosofia não serve para nada?

Mary Warnock tentou contrariar esta ideia. À semelhança de Matthew Lipman, Warnock considera que

 

“É essencial mudar os conteúdos do currículo quer no nível básico quer no secundário, de modo a que este encoraje os alunos a tornar-se maleáveis, ou, dizendo de outro modo, a que encoraje a sua imaginação (…) de modo a adotar uma atitude crítica, analítica e histórica perante tudo aquilo que lhes é ensinado. E fazer isto é precisamente a função de uma filosofia crítica.” (Warnock, 2013, p. 308)

 

No campo da ética, por exemplo, seria necessário problematizar temas como as nossas “obrigações para com a Natureza e para com as diferentes espécies que nela habitam; a debater problemas sobre o genoma humano, o bem-estar das crianças, a experiência íntima, a capacidade de escolha, a identidade pessoal, a imaginação religiosa” (Ferreira, 2013, p. 308), etc. Parece a todos evidente que num tempo, como o nosso, em que a abundância de informação não conduz necessariamente ao conhecimento, nem sequer a uma perspetivação crítica, reflexiva, problematizadora acerca dessa mesma abundância de informação, torna-se imperioso desenvolver as capacidades de problematização, conceptualização, argumentação e comunicação acerca dos muitos temas que nos interpelam.

Mas que filosofia temos hoje nas escolas? Ferreira sublinha

 

“Dois perigos que desfiguram o rosto da filosofia (…). O primeiro é a visão historicista da mesma, um erro apontado ao ensino da filosofia no bacharelato francês. Segundo Warnock, este limita-se a ensinar o que disseram os filósofos como Descartes ou Kant. (…) o segundo dano decorre da caricatura oposta que é ensinar filosofia a partir de uma coleção de questões gerais interessantes, o que a identifica com uma técnica argumentativa”. (Ferreira, 2013, p. 313)

 

A questão que sobra é a de saber como encontrar um equilíbrio que impeça a filosofia de se transformar num longo desfile de autores ao longo da história ou uma mera artimanha logicista, com propensão para um debate relativista fundado em meras opiniões. Se o que nos interessa é determinar as competências que devemos fomentar nos estudantes, no nosso entender a alternativa a esta dicotomia pode encontrar-se na Filosofia com Crianças e Jovens (FcCJ). A explicitação dos princípios fundamentais da FcCJ permite-nos, simultaneamente, responder à quarta questão colocada por Boavida e referida no primeiro capítulo: a quem se ensina Filosofia? Já não se trata apenas de questionar o ensino de Filosofia no ensino secundário, mas também a crianças e jovens a partir dos 5 anos de idade.

Lipman surge inspirado pelas teorias pragmatistas (Charles Sanders Peirce e John Dewey) e construtivistas ou socioconstrutivistas (Jean Piaget, Lev Vigotsky), no sentido em que considera que as suas ideias teóricas se fundamentam na prática exercida e que as crianças possuem, desde muito tenra idade, a capacidade de raciocinar. Acredita que seria possível o desenvolvimento do raciocínio através da aprendizagem da lógica: aprender lógica permitira às crianças desenvolver as suas competências de raciocínio.

A Filosofia para Crianças, ou Filosofia com Crianças (e Jovens) é uma prática educativa que tem conhecido um desenvolvimento crescente, e consiste no exercício do pensamento crítico e reflexivo com crianças. Em grupo, como se de uma comunidade de investigação se tratasse, ou porque efetivamente o é, as crianças trabalham uma narrativa, como uma história, conto ou novela, (re)formulam conceitos e defendem os seus argumentos e pontos de vista. O professor não é um transmissor de conteúdos, mas antes um facilitador de aprendizagens, à maneira socrática, com a tarefa de orientar o debate e suscitar a reflexão, a crítica, a construção conjunta de um conceito, uma ideia, uma argumentação, uma tese. Liberdade e democracia são aqui valores fundamentais, precocemente desenvolvidos nesta comunidade de investigação. É com Lipman que ressurge a ideia de “comunidade de investigação filosófica”[3].

 

“Se a filosofia está a encontrar um lugar respeitável nas escolas de 1.º e 2.º ciclos, é porque alguns educadores com espírito pragmático descobriram que as crianças estão encantadas com ela e que a filosofia contribui significativamente para a melhoria do ensino, mesmo no domínio de competências básicas como a leitura e a matemática. (…) Todas as disciplinas parecem fáceis de aprender quando o seu ensino é infundido com a abertura, o espírito crítico e o rigor lógico caraterísticos da filosofia. (…) Certamente foi Dewey que, nos tempos modernos, antecipou que a educação tinha de ser redefinida como o fomento do pensar (…), que não podia haver diferença entre o método pelo qual os professores eram ensinados e o método pelo qual se esperava que eles ensinassem (…) e que a alternativa à doutrinação dos estudantes é ajudá-los a refletirem eficazmente sobre os valores que lhe são constantemente impostos. (…) O tradicional manual do professor, um compêndio de exercícios fastidiosos com as respetivas respostas, deu lugar a estratégias de questionamento e a planos de discussão orientados para páginas e linhas específicas do texto e projetados para provocarem diálogos através dos quais os conceitos abordados pelo texto são operacionalizados e compreendidos. (…) Se, no decorrer do diálogo na sala de aula, são descobertas alternativas insuspeitadas, o objetivo não é confundir os alunos levando-os a refugiarem-se no relativismo, mas encorajá-los a utilizarem as ferramentas e os métodos de investigação de maneira a que possam, de modo competente, aferir evidências, detetar inconsistências e incompatibilidades, retirar conclusões válidas, construir hipóteses e utilizar critérios, até tomarem consciência das possibilidades de objetividade e relação a valores e a factos. (…) E a sala de aula teria de votar-se ao raciocínio, à investigação, à autoavaliação, até se tornar numa comunidade exploratória, ainda que autocorretiva, onde os professores são qualificados tanto em apadrinharem a reflexão, como em comprometerem-se e com ela.” (Lipman, 1988, pp. 3-7)

 

Lipman escreveu livros como “A descoberta de Aristóteles Maia”, “Lisa” e “Pimpa”, destinados a crianças e ao desenvolvimento do raciocínio lógico. Com Ann Sharp desenvolveu aquilo que hoje chamamos “Filosofia com Crianças”, um programa de ensino que proporciona “às crianças o desenvolvimento de competências cognitivas, sociais e afetivas que as habilitam a lidar filosoficamente com qualquer problema que as interpele enquanto seres humanos” (Carvalho, 2013, p. 303).

Em Portugal existem já contributos notáveis na área da Filosofia com Crianças. Na Universidade dos Açores funciona um mestrado, anteriormente pós-graduação, em Filosofia com Crianças; a Associação de Professores de Filosofia tem vindo a desenvolver cursos de formação em Filosofia com Crianças e Jovens creditados pelo Conselho Científico-Pedagógico de Formação Contínua de Professores[5]; a Sociedade Portuguesa de Filosofia apoia a divulgação de Filosofia com Crianças; e a Associação Portuguesa de Ética e Filosofia Prática (APEFP) tem publicado livros e dinamizado ações de formação com regularidade[7]. Algumas escolas, associações de pais e câmaras municipais começaram já a disponibilizar sessões de Filosofia com Crianças.

Entretanto, Maria José Figueira-Rego elaborou um “Currículo Nacional de Filosofia com Crianças e Jovens”, que “consiste num projeto de investigação sediado no Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, financiado através de uma Bolsa de Pós-doutoramento atribuída pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia” (Figueiroa-Rego, 2015). O projeto encontra-se materializado em oito livros distribuídos por quatro níveis, sendo que em cada nível existe um manual do aluno (“Histórias para Pensar”) e um livro do professor. O nível I dedica-se a crianças dos 5 aos 7 anos; o nível II corresponde a crianças com 8 a 10 anos; o nível III situa-se entre os 10 e 12 anos e o nível IV é dirigido a jovens com 12 a 14 anos. As sessões propostas desenvolvem-se em torno de uma “Agenda de Discussão, (…) num trabalho cooperativo de interação entre os diferentes intervenientes que se envolvem numa discussão filosófica acerca destas mesmas questões” (Figueiroa-Rego, 2015). Esta abordagem implica alterações do perfil do aluno, do formato de ensino-aprendizagem e do perfil do professor, e estrutura-se em três vetores fundamentais: pensamento crítico, criatividade e pensamento interventivo[8]. A inspiração deste currículo é claramente lipmaniana.

Torna-se evidente que, com Lipman, a filosofia deixa de ser uma atividade com uma clara inclinação académica, talvez mesmo erudita, e, num regresso às raízes, volta a ser um exercício do pensamento, aplicável à vida quotidiana. Trata-se, novamente, de um projeto também antropológico e cívico: afinal, “em que mundo queremos viver?” (Carvalho, 2013, p. 305). Não se trata apenas de desenvolver competências cognitivas, mas de algum modo pensar sobre a sociedade em que queremos viver.

Mas Lipman também tinha consciência que a Filosofia não deve esgotar-se num mero jogo lógico, pelo que entendia ser necessário promover nos alunos um pensamento de ordem superior, que os levasse a desenvolver igualmente o pensamento crítico, a criatividade, a interajuda e a colaboração. Neste quadro, o professor deixa de ser um mero transmissor de conteúdos, acriticamente memorizados pelos alunos, e passa a ser um facilitador de aprendizagens que procura desenvolver nos seus alunos as competências filosóficas requeridas pela comunidade, uma conceção substancialmente diferente de Hegel ou Heidegger. Ora, a ser assim, devolve-se à Lógica um papel central no ensino da filosofia, pois as competências básicas de lógica serão operatórias na análise e discussão dos problemas, das teses e dos argumentos abordados nas aulas e alicerçados nas matérias propriamente filosóficas.

 

A filosofia deve ser entendida como “discussão crítica das teorias e dos argumentos filosóficos” (Polónio, 2009, p. 110). É necessário ter em conta que o combate à mera opinião comum não pode ser feito com base nas nossas intuições. Essa luta deve travar-se com os devidos instrumentos lógicos, pelo que o estudo de lógica, em filosofia, não só é fundamental como deve ser operacionalizado ao longo de todo um programa de ensino de filosofia.

[1] Paulo Ghiraldelli diz que a filosofia é uma narrativa de desbanalizaçao do real: https://ghiraldelli.wordpress.com/2008/04/12/o-que-e-a-filosofia-em-menos-de-3-mil-palavras/

[2] Cf. Tratactus Theologico-politicus, 1670, capítulo VII, parágrafo 94

[3] Atualmente, esta ideia encontra eco no Conetivismo, a teoria educativa referida no Capítulo 1.

[5] Cf. http://apfilosofia.org/2017/07/06/filosofia-com-criancas-e-jovens-sua-aplicacao-pratica-e-transdiciplinar/

[7] Cf. http://www.apefp.org/filosofia-para-crian%C3%A7as/

[8] Tradução proposta por Maria José Figueira-Rego a partir do original “Caring Thinking”.

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