Da filosofia do charco à da subtileza

Um dos problemas filosóficos mais facilmente associável à vivência humana do dia a dia é o de saber se temos ou não obrigação moral de ajudar quem vive em pobreza extrema. Peter Singer avançou com um dos mais famosos e pungentes argumentos acerca deste tema. Segundo ele se podemos evitar um mal, algo profundamente negativo, mesmo que isso nos cause um pequeno prejuízo (e se esse pequeno prejuízo é de importância moral bastante inferior ao mal que se evita), então temos a obrigação de agir. (cf. Peter Singer, Ética Prática, Gradiva, pp. 250-252) Este argumento é ilustrado com o famoso exemplo da criança em risco de vida num lago. «Suponhamos que me apercebo de que uma criança caiu a um lago e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama entre outros inconvenientes; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante. Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo.» (250) Parece realmente plausível que perante um cenário destes temos a obrigação moral de agir e salvar a criança. A questão torna-se mais densa quando Singer estende o alcance deste argumento para a obrigação de ajudar os pobres. Se os ricos não sacrificarem nada de importância moral comparável, e se considerarmos a vida em pobreza absoluta uma coisa má, então os ricos têm a obrigação moral de ajudar quem vive em grandes dificuldades.
Este argumento inspirou o próprio autor a criar um sítio na Internet em que divulga o seu último livro (http://www.thelifeyoucansave.com/) ao mesmo tempo que convida as pessoas a assumir o repto de ajudar a salvar uma vida fazendo uma doação de uma parte do seu rendimento. [Para ler o argumento na base desse livro – que no fundo é uma versão daquele analisado neste texto – clique aqui. Aliás esta postura não é única, felizmente. Outro pensador com créditos no mundo académico, Thomas Pogge, assumiu uma posição semelhante. Criou uma proposta concreta a que chamou Health Impact Fund. Para saber mais clique aqui.]

Das dificuldades normalmente apontadas ao argumento de Singer gostava apenas de me centrar naquelas avançadas por Kwame Anthony Appiah no seu livro Cosmopolitismo – Ética num mundo de estranhos, Publicações Europa-América. Este autor rejeita a conclusão forte do argumento, embora sinta intuitivamente o apelo do argumento. «O problema com este argumento não é afirmar que nós temos obrigações incríveis com estranhos. O problema é afirmar que nós temos obrigações incríveis.» (Appiah, p. 157) Este filósofo cosmopolita entende que o princípio moral proposto por Singer nos obriga a uma postura radical que pode inclusivamente levar-nos à ruína. Por isso, reformula-o e apresenta um princípio semelhante apelidando-o de «princípio da emergência», mas que não possui, segundo Appiah, as consequências do princípio de Singer: «Se você é a pessoa na melhor posição para impedir algo realmente horrível, e se não custa muito fazê-lo, então faça-o.» (159) Para Appiah, a nuance introduzida com a expressão «a pessoa na melhor posição para» assegura que não seremos penalizados moralmente por não realizarmos sacrifícios excessivos para aliviar a pobreza num lugar qualquer recôndito do globo. Se esta argumentação parece querer desculpar a não intervenção e justificar a passividade perante desastres humanitários, julgo que devemos atentar nalguns limites à nossa aplicação do princípio de Singer que podem dar alguma razão a Appiah. Em primeiro lugar, qualquer ajuda humanitária para aliviar a pobreza extrema tem que ser mediada pelo Estado-nação (ou por ONGs que devem obedecer às regras desses estados). Não é possível uma ajuda eficaz sem respeitar os Estados e sem promover o seu desenvolvimento institucional. Por isso, muitas das obrigações para com quem vive em pobreza extrema são obrigações colectivas, de povo para povo, de Estado para Estado. Mas temos também obrigações particulares, individuais. Uma segunda dificuldade consistiria, portanto, em definir uma fronteira para lá da qual devemos sentir a consciência pesada, por outras palavras, um limite para a nossa obrigação básica para com as pessoas que vivem em pobreza extrema. Aqui parece-me que Appiah exagera no alcance que atribui ao argumento de Singer. Este não implica que nos sacrifiquemos para lá do razoável. Todos podemos estabelecer uma obrigação pessoal básica e cumprir essa obrigação, por mínima que seja, e ainda assim sermos coerentes com o princípio de Singer. Mas, no entender de Appiah, o princípio de Singer compromete-nos com actos claramente superrogatórios.

Uma crítica mais profunda, e mais difícil de refutar, consiste na análise da teoria do valor que subjaz ao argumento de Singer. Não podemos, diz Appiah, entender uniformemente o valor de todas as coisas. Não há uma medida uniforme e universal de valor. O problema é encarar o argumento de Singer como um peso na consciência sempre que vamos ao cinema e sabemos que o dinheiro do bilhete poderia vacinar algumas crianças num qualquer país pobre. Mas ambas as coisas são valiosas à sua maneira. Devemos dar atenção a coisas diferentes e empenharmo-nos a realizar coisas diferentes. Por isso, Appiah pergunta-nos: «Tem a certeza de que queria viver num mundo no qual a única coisa em mente de todas as pessoas fosse salvar vidas?» (163)
As subtilezas de argumentação de Appiah foram aqui apenas sugeridas de forma pouco aprofundada; fica aqui apenas a referência crucial à crítica deste autor ao argumento em favor da obrigação moral de ajudar quem vive na pobreza absoluta proposto por Singer, crítica essa que se centra na ilegitimidade moral com que coloca uma enorme responsabilidade nas costas de todos nós. Julgo, no entanto, que podemos aceitar o argumento de Singer sem o carácter superrogatório que Appiah lhe dá. Aliás, o próprio Singer parece entendê-lo assim no seu último livro, atrás referido, quando sugere um cálculo razoável para estabelecer a nossa contribuição na ajuda ao combate à pobreza.