“Didáctica da Filosofía” é um livro de 1984 de Victor Santiuste a Francisco Velasco. O livro dificilmente poderá ser encontrado à venda em alguma livraria, sendo mais provável encontrá-lo em algum alfarrabista, no mercado de livros em segunda mão ou em bibliotecas universitárias.
Tendo sido publicado em 1984 e remetendo para bibliografia dos anos 60 e 70, é natural que sintamos aqui ou ali algum desconforto, senão mesmo perplexidade, com determinadas concepções dos autores. Afinal, aquilo que entendemos por “ensino”, “professor”, “aluno” ou mesmo “filosofia” parece ter mudado bastante nestes quase quarenta anos passados sobre a sua publicação. Simultaneamente, o livro possui uma certa atualidade, pela forma como perspetiva não apenas o ensino da Filosofia mas toda a atividade de ensino e de aprendizagem que se processa, hoje, nas escolas.
Na “apresentação”, Santiuste começa por situar a Filosofia nos dias de hoje (recordo que o livro é de 1984): uma tarefa renascente e sempre inacabada, eminentemente reflexiva e crítica perante a informação e a propaganda, integradora face a uma ciência cada vez mais especializada e orientadora do ser humano. Defende a sua existência nos cursos de Bacharelato (Em Espanha, em 1984, os curso de bacharelato seria semelhante ao nosso antigo “propedêutico”) pela sua capacidade de levar os alunos a serem capazes de refletir sobre si mesmos, o mundo, a ciência, a informação.
No Capítulo 1, “A Filosofia hoje”, apresenta algumas razões para o descrédito da Filosofia: o desprestígio face ao saber experimental, a tradição de um ensino dogmático, a sua desvinculação com a realidade, a retórica, a multiplicação de escolas e tendências, a obscuridade da linguagem, a promiscuidade política, etc. A partir da “morte da Filosofia” e da “crise da Filosofia”, traça um panorama do seu ensino no mundo atual, tendo em conta que a revolução científica e técnica conquistou o espaço mental, e que a educação de massas e os mass media abriram caminho à alienação, à propaganda, ao conformismo. Neste quadro, a filosofia poderia destacar-se por nos oferecer um “humanismo científico” que permite a demarcação do científico e do ideológico, como referencial axiológico e como praxis política. Para Santiuste, o papel da Filosofia é, historicamente, o de se constituir como concepção geral sobre a realidade, o de propor uma teoria geral sobre o homem e da sua relação com o mundo, incluindo a ética e a estética, o de ser uma teoria sobre o conhecimento científico, uma interpretação da linguagem e o estudo sobre o pensamento e as suas condições de validade, tarefa essencial da Lógica.
O Capítulo 2, “A função educativa e os seus elementos” debruça-se sobre os tipos de ensino e os elementos da função educativa: o professor e suas funções, ontem e hoje; o aluno; a escola e a família. Santiuste detém-se particularmente nas funções e papeis do professor, que em poucos anos passaram de difusor da cultura e transmissor dos valores culturais a âmbitos tão diversos como dinamizador da aprendizagem, conselheiro e orientador, mediador da cultura, elo de ligação com a comunidade , sem esquecer que cada professor é também um e membro ativo da comunidade científica e pedagógica de que faz parte.
O terceiro capítulo reflete sobre o lugar da Filosofia no bacharelato. O capítulo é muito específico da situação conjuntural do autor na época em que o texto foi escrito, mas deixa-nos alguns avisos preciosos: se a filosofia é necessária nos cursos de bacharelato,, que orientação deveremos dar a tais conhecimentos? Teremos de abordar a filosofia sob uma perspetiva escolástica, dogmática, de transmissão de doutrinas filosóficas completas e encerradas ou, em alternativa, levar os alunos a conviver com os textos dos filósofos refletindo sobre os problemas concretos à maneira socrática? Neste ponto, Santiuste propõe cinco princípios gerais sobre o que deve ser o ensino da filosofia:
– o aluno deve estar consciente do caráter autónomo e criativo da Filosofia;
– as questões filosóficas são abertas e as suas soluções são plurívocas e inacabadas;
– a filosofia possui um léxico bastante específico;
– é necessário precisar com exatidão a relação entre a filosofia e as ciências particulares;
– e reconhecer que o saber filosófico diz respeito às ciências humanas.
Assim, a filosofia que é ensinada nas escolas deve constituir uma reflexão sobre os temas que estão relacionados com os interesses dos alunos, dos quais salienta alguns exemplos concretos: a agressividade, a sexualidade, a violência, a morte e o amor. A disciplina de filosofia seria assim organizada em temas de ontologia, teoria do conhecimento, ética. É curiosa esta concepção de Filosofia centrada em temas, pois hoje a maioria dos investigadores prefere a estruturação dos programas em torno de problemas.
O quarto capítulo é dedicado aos “cuestionarios”e aos programas da disciplina. A tradução de “cuestionarios” é problemática, pelo que a entendo aqui como conjunto de questões próprias da filosofia. Santiuste sugere a existência de conteúdos mínimos e máximos no programa, o que exige a devida planificação. A planificação incide sobre conteúdos, objetivos, recursos e materiais necessários ao cumprimento do programa da disciplina, para o qual propõe um modelo:
A) Descição geral da disciplina
B) Determinação dos pobjetivos gerais
C) Proposta de objetivos específicos
D) Conteúdos
E) Metodologia
F) Atividades
G) Prática
H) Avaliação do rendimento
I) Bibliografia e material
O quinto capítulo intitula-se “o ensino da Filosofia. Aspetos didáticos (I)”É de salientar a explanação de métodos para estudar Filosofia, a que poderíamos chamar “métodos filosóficos”, mas não pedagógicos:
– o método dialógico (ou socrático)
– disputatio (na tradição escolástica)
– confissão, solilóquio ou diário (na senda de Santo Agostinho, Descartes ou Marco Aurélio)
– método dialético (à semelhança de Marx ou Hegel)
– método crítico tal como se encontra na psicanálise ou em Habermas e Adorno)
– método arqueológico (de que constitui exemplo Foucault)
– leitura sintomática (Althusser, JKolakovsky)
– método estruturalista (Alquié)
– método analítico Wittgenstein)
Esta proposta revela claramente uma imbricação entre os autores estudados e a forma, a metodologia necessária ao estudo de cada um deles, constituindo uma linguagem própria que obriga o leitor a ler filosofia para conseguir penetrar nas linguagens que lhe são próprias.
O sexto capítulo é a segunda parte do capítulo anterior. Trata-se agora de encontrar não apenas “o quê” mas o “como” ensinar filosofia, sendo que Santiuste encontra três enfoques principais: o “ideologista“, centrado nos conteúdos; o “psicologista“, centrado nas competências críticas; e o “positivista“, antimetafísico e centrado na transmissão de conteúdos próximos das ciências.
Aqui chegado, Santiuste elabora uma proposta de programa de Filosofia para o Bacharelato e para cursos universitários.
O Capítulo 7 é, talvez, o mais interessante para professores de Filosofia, pois dedica-se à análise de “Instrumentos didáticos”, ou seja, métodos pedagógicos (e não estritamente filosóficos) para a aprendizagem de Filosofia.
1) A Lição
Contendo a Filosofia a sua própria pedagogia, a Lição consiste numa sessão com aproximadamente uma hora para exposição magistral. Formas mais ligeiras da Lição incluem a explicação de textos e de documentação.
2) A Dissertação
Trata-se de um trabalho escrito no qual o aluno desenvolve um tema ou problema filosófico. Para Santiuste, o mais importante da dissertação é o trabalho prévio de investigação.
3) O Comentário de texto
Enquanto a dissertação é um trabalho aberto no qual um tema, um problema ou um texto servem de pretexto para uma exposição ampla, o comentário de texto baseia-se e centra-se no texto por si mesmo. Santiuste alerta que o comentário de texto passou a ser a estratégia didática preferida dos professores de Filosofia, mas a sua função não deve ser outra senão a de permitir que o aluno aprenda a pensar.
Existem vários modelos de comentário de texto propostos por Santiuste e Velasco, aqui meramente resumidos:
I. Modelo de Trías Mercant
a) compreensão do texto
b) explicação do texto: conceptualização, análise terminológica e análise lógica; valoração crítica, rigor da abstração e criatividade conceptual.
(nota: Sebastià Trias Mercant foi professor catedrático de Filosofia)
II. Modelo de Cerezo
a) análise objetiva do texto (sintática, semântica, estilística)
b) análise contextual ou sincrónica (sentido do texto dos pontos de vista da obra do autor, da corrente filosófica em que se insere ou da cultura do seu tempo)
c) análise histórica ou diacrónica (do autor e da obra na história da filosofia)
(nota: presumo que Santiuste e Velasco se refiram a Pedro Cerezo Galán)
III. Normas da Universidade de Oxford
a) análise dos conceitos
b) análise do método
c) relações do texto com a obra do autor, a linha filosófica, …
d) ideias fundamentais do texto
e) estudo crítico
f) conclusões
4) Os Trabalhos de Grupo
Os trabalhos de grupo podem ser concretizados em várias modalidades; comentário de uma obra, elaboração de uma revista ou trabalhos de investigação, e devem ser apresentados publicamente, sob a forma de seminários (um seminário é uma apresentação pública efetuada por um especialista ou por um grupo de especialistas num determinado assunto; neste caso, os especialistas são os alunos).
5) Os Trabalhos Escritos
Podem ser desenvolvidos em várias modalidades, como o trabalho escrito sobre textos (textos aplicados na aula sobre os quais incide um questionário orientado por questões sobre os conceitos e a estrutura argumentativa); a elaboração de dossiers (a desenvolver durante todo o curso /ano letivo); a redação de memórias ou ensaios; a análise de noções filosóficas; os resumos; e as “tribunas contraditórias“, uma metodologia de trabalho muito parecida com aquilo a que atualmente chamaríamos “controvérsia construtiva”, na qual grupos de alunos representam e defendem teses contraditórias.
6) A Oficina de Filosofia
Podem ser realizadas de várias formas: uma revista de filosofia, um teatro, um debate sobre um filme, etc.
O oitavo e último capítulo é sobre avaliação. Desenhado o processo educativo, realizado efetivamente, o mesmo tem ser ser por fim avaliado. Santiuste salienta que a avaliação deve ser integrada no processo educativo, deve oferecer dados objetivos, e exige que esses mesmos dados sejam analisados para que permitam o aperfeiçoamento dos métodos, dos procedimentos e dos conteúdos do programa. Os objetivos a avaliar terão de ser claramente formulados, mas é interessante verificar que Santiuste segue de muito perto a taxonomia de Bloom, sugerindo duas tabelas para a discriminação de objectivos formativos / informativos e objetivos operatórios. Assim, para estes últimos propõe uma tabela que contempla itens como a memorização de factos, a formulação de conceitos, a capacidade de análise e síntese e a capacidade de relacionação de conteúdos e a crítica.
Quanto aos modelos de provas, Santiuste distingue entre provas objetivas e provas de ensaio.
As provas objetivas podem ser perguntas de escolha múltipla, de completamento de frases, de verdadeiro/falso e de identificação da resposta correta.
Vale a pena citar o que diz Santiuste sobre este tipo de provas, em tradução livre:
“Trata-se de provas rápidas, de fácil aplicação, trabalhosa na sua preparação mas rápida na correção, que se pode fazer com uma folha de cálculo. A aplicação destas provas no ensino de Filosofia é considerada por muitos professores como contrária ao papel formativo que se atribui à disciplina. No entanto, pensamos que, ainda que as provas objetivas não sejam as mais significativas, pois através delas não é possível medir objetivos tidos como próprios desta matéria, daí não se segue que se dispense a sua aplicação. O ensino de Filosofia não deve ser basicamente memorístico, mas deve contemplar entre os seus objetivos alguma informação sobre factos, autores e conceitos para os quais as provas objetivas são as mais adequadas.”
As provas de ensaio permitem avaliar níveis superiores da atividade mental, nomeadamente as capacidades de análise, síntese, relação, crítica, expressão, etc, e podem ser desenvolvidas em diversos instrumentos: dissertação, comentário de texto, desenvolvimento de temas, resumo ou esquematização de um texto, síntese de um tema, comentário crítico de uma obra, etc.
Transversal a todo o livro é o seu quadro metafilosófico de referência, revelando-se aqui ou ali uma determinada concepção de Filosofia, à qual estão subjacentes princípios e dinâmicas didáticas muito próprias. É importante ter isso em consideração quando se lê este livro, que continua a ser um interessante recurso para a formação inicial de professores.