«As crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspetos tão invulgares que parece apropriado descrevê-los como exemplo dos extremos a que pode chegar o comportamento humano.
Trata-se de um grupo norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e os Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe sobre a sua origem, embora a tradição relate que vieram do leste.
De acordo com a mitologia dos Nacirema, a sua nação foi criada por um herói cultural, Notgnihsaw, que é conhecido por duas incríveis proezas: ter atirado um colar de conchas para o rio Po-To-Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade.
A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que tem crescido num rico habitat natural. Apesar de o povo dedicar muito tempo às atividades económicas, uma grande parte dos frutos deste trabalho e uma considerável parte do dia são dedicados aos rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde surgem como interesses dominantes no ethos deste povo.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que tende naturalmente para a debilidade e para a doença. Encarcerado num corpo como este, a única esperança do homem é afastar estas características através de rituais e cerimoniais.
Cada habitante tem um ou mais santuários devotados a este propósito. Os indivíduos mais poderosos da sociedade têm vários santuários em casa e, de facto, a opulência de uma casa, muito frequentemente, é medida em termos do número de centros rituais que a compõem.
O ponto central do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Neste cofre, guardam-se os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita poder viver. Tais preparados são conseguidos através de uma série de profissionais especializados, os mais poderosos dos quais são os médicos-feiticeiros, cujo auxílio deve ser recompensado com dádivas substanciais.
Abaixo da
caixa-de-encantamentos existe uma pequena pia batismal. Todos os dias, cada
membro da família, um após o outro, entra no santuário, inclina o seu rosto
sobre a caixa-de-
-encantamentos, mistura diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal e
procede a um breve rito de ablução.
Na hierarquia dos mágicos
profissionais, logo abaixo dos médicos-feiticeiros no que diz respeito ao
prestígio, estão os especialistas cuja designação pode ser traduzida por
«sagrados-
-homens-da-boca». Os Nacirema nutrem um horror quase patológico, e ao mesmo
tempo fascinação, pela cavidade bucal, cujo estado acreditam influenciar todas
as relações sociais. Acreditam que, se não fosse pelos rituais bucais, os
dentes cairiam, as gengivas começariam a sangrar, os maxilares encolheriam,
deixariam de ter amigos e seriam rejeitados pelos companheiros.
Apesar de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, há um ritual que envolve uma prática que choca o estrangeiro não iniciado, chegando mesmo a revoltá-lo. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca juntamente com alguns pós mágicos e em movimentá-lo por meio de uma série de gestos altamente formalizados.
Esperamos que quando for realizado um estudo completo acerca dos Nacirema seja feito um inquérito cuidadoso sobre a estrutura da personalidade destas pessoas. Basta observar o fulgor nos olhos de um sacerdote-da-boca, quando ele enfia um furador num nervo exposto, para se suspeitar que este rito envolva um certo grau de sadismo.
Foi a estas tendências que, em 1936, o Prof. Linton se referiu na discussão de uma parte específica dos ritos corporais desempenhados apenas por homens. Esta parte do rito envolve raspar e lacerar a superfície do rosto com um instrumento afiado. Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que lhes falta em frequência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimónia, as mulheres ousam colocar as suas cabeças em pequenos fornos durante cerca de uma hora.
Os médicos-feiticeiros têm um templo imponente, ou latipsoh, em cada comunidade de determinada dimensão. Sabe-se que as crianças, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às tentativas de as levarem ao templo porque «é lá que se vai para morrer».
Como conclusão, deve-se fazer referência a certas práticas que se baseiam na estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e às suas funções. Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras.
As funções naturais de reprodução são, igualmente, distorcidas. Evita-se a gravidez pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do relacionamento sexual em certas fases da lua. A conceção é, na realidade, pouco frequente. Quando estão grávidas, as mulheres vestem-se de modo a esconder o seu estado. O parto faz-se em segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta os filhos.»
Horace Miner, «Body ritual among Nacirema», American Anthropologist, 1956.