Entrevista com Paul Ricoeur (1976)

«Entrevista com Paul Ricoeur [sobre a crise da filosofia]». Publicada em: La philosophie  d´aujourd´hui, Lausanne-Barcelone: Éditions Grammont-Salvat Editores, 1976 (Bibliothèque  Laffont des grandes thèmes). (II.A.314a.)
A filosofia actual
Entrevista com Paul Ricoeur (1976)
A filosofia – «esse modo de pensamento que se situa entre a religião e a ciência», como diz  Bertrand Russel – parece ter entrado numa crise essencial, a mais grave de toda a sua história.  Atacada por todos os lados pelas diversas disciplinas científicas, viu serem-lhe contestados os  domínios tradicionais que os Gregos lhe tinham  atribuído. Por sua vez, vira-se para novos  campos de pesquisa: a  legitimidade do poder omnipotente da ciência, a significação da  história, a reflexão sobre a semiologia, sobre a linguística e sobre a  estética…
Interrogámos o professor Paul Ricoeur para lhe perguntar se a decadência da filosofia  enquanto instituição corresponderia a um declínio do seu conteúdo. 
A filosofia parece actualmente à margem, desligada das outras disciplinas…
Paul Ricoeur: O facto é relativamente recente. É no século XVIII que a filosofia se torna  universitária. No século XVII, nem Descartes,  nem  Leibniz ou Espinosa eram universitários.  Uma certa funcionalização deu-lhe um quadro institucional, uma espécie de existência social.  Por vezes, isso pode mascarar a sua não-existência. A filosofia, aconteça o que acontecer, é  ensinada. A sorte da filosofia não coincide com a do ensino da filosofia. Desejaria, por isso, separar inteiramente o destino da filosofia do seu ensino.
O que é que mudou desde a morte de Hegel, o último grande filósofo sistemático?
P.R.: Creio que a possibilidade de fazer um sistema. Hegel reuniu a totalidade da nossa cultura.  E eu entendo por isso não apenas filosofias muito diferentes como as filosofias antigas,  medievais e modernas, mas igualmente a não-filosofia. A filosofia parece reunir, pela primeira  vez, num mesmo sistema: o direito, a estética, a política, a experiência jurídica, etc. Hegel  apresentou-nos a totalidade da nossa herança, ordenou-a e pensou-a. Os dois factos  dominantes são estes: 1º hoje ninguém está mais em condição de proceder a uma tal reunião;  2º a herança reunida por Hegel  afastou-se de nós. Este segundo fenómeno é talvez o mais  impressionante. Nós estamos actualmente quase tão distantes de Platão, de Aristóteles ou
mesmo de Descartes ou Kant, como de fenómenos exóticos. Essa espécie de afastamento das  nossas próprias raízes está na origem daquilo que Nietzsche apelidou «niilismo». Não é preciso  pensar este conceito em termos emocionais (o reino dos destruidores…), mas como um vasto  processo histórico de distanciação das nossas raízes culturais. Para a filosofia é um destino particularmente dramático: com efeito, não existimos como filósofos senão na medida em que  continuamos um certo tipo de questões inauguradas pelos Gregos. O que foi feito na China, na  Índia, não é filosofia, é uma outra forma de pensar. A questão coloca-se então na medida em  que nos afastámos dos conteúdos de pensamento grego. Entrámos depois de Nietzsche num  período que se poderia chamar de «crítico». Assistimos, dizem alguns, a uma desconstrução  dessas heranças,  fenómeno  que passa pelo próprio Nietzsche ou por Marx ou Kierkegaard.  Apenas temos destroços da grande tradição e dos exercícios críticos em torno de significações  que se afastaram de nós.
Será que poderemos  encontrar um  retorno às origens da filosofia, sob uma  perspectiva  diversa da reunião hegeliana da nossa tradição?  Qual é a relação da  filosofia com as ciências?
P.R.: Todos os grandes filósofos do passado foram competentes numa ciência e muitas vezes  em várias: Platão era geómetra, Descartes matemático, etc. Por conseguinte, a filosofia não se  limitava a um debate consigo mesma.  Hoje em dia, é  muito frequente os filósofos  apenas  dialogarem com outros filósofos.
Há hoje, nas ciências humanas em particular, diálogo que permita um relançamento  da filosofia?
P.R.: Por um lado, diria muito naturalmente que a filosofia não pode sobreviver se não  mantivermos, custe o que custar, a memória do que desapareceu. Não há filosofia sem história  da filosofia. Por outro lado, ela deve manter o debate com uma ciência ou com as ciências. As  ciências humanas são um interlocutor privilegiado: elas são as únicas em que o objecto é o  mesmo que na filosofia. Nas ciências da natureza, o objecto é diferente (as coisas, a vida…). A  questão, interna às ciências humanas, é  a  de saber se elas podem tratar o seu objecto  exactamente como as ciências  da natureza. É talvez a função da filosofia retomar  incessantemente o «caminho» do método. Se evitamos o caminho do método e submetemos
constantemente as ciências humanas às ciências naturais, nesse mesmo instante o seu objecto  é esquecido; entendo aqui por objecto o homem. Logo, o trabalho fundamental é relembrar,  às  ciências humanas, o seu objecto, retomar o caminho do método reclamado pelo seu  objecto, o homem.
Esse trabalho assemelha-se, em certos aspectos, à tarefa hegeliana, ao que chamava há pouco  uma síntese.  Como as ciências naturais, as ciências humanas  cindiram-se  (em  linguística,  sociologia, psicanálise…). Elas sofreram a lei da divisão do trabalho e da dispersão de todas as  outras ciências. Põe-se  pois  o problema não só de agregar resultados ou métodos, mas de  remontar aos fundamentos que precedem a explosão dos métodos e dos resultados. É aqui que se situa, creio, o problema de uma antropologia filosófica. Penso que uma das vias para o  fazer consiste em tentar este exercício de reunião ao nível da linguagem. A nossa linguagem é igualmente uma linguagem cindida; é, por um lado, de natureza lógica, matemática, ou  científica; mas temos igualmente uma linguagem da vida quotidiana, uma linguagem do slogan  e da propaganda, uma linguagem da acção política, uma linguagem poética, etc.  Uma das  tarefas da filosofia não seria tentar essa grande filosofia da linguagem, na qual se compreenderia em suma que é sempre o mesmo homem que fala?
Está a falar de uma linguagem que a chamaríamos de um modo mais científico uma semiologia?
P.R.: Sim, com certeza.
Fico espantado, ao estudar os dicionários, pelo facto de ver que não há nenhum  método para o fazer. Ficamos com a impressão de que a linguagem escapa  por  enquanto ao método científico?
P.R.: Provavelmente porque o dicionário não exprime ainda as revoluções metodológicas que  tiveram lugar na linguística. Trata-se, muito simplesmente, da distinção entre duas formas de  tratar uma palavra. Podemos  perguntar o que  ela significa numa língua, ou ainda procurar  saber o que são os objectos de que ela fala. Os nossos dicionários misturam as duas coisas.  Falam das coisas nomeadas e falam também do lugar das palavras no sistema lexical de uma  língua. Os nossos dicionários são uma espécie de compromisso entre, por um lado, uma  verdadeira semântica das palavras, isto é, a ordenação de uma palavra em relação a todas as  outras, sem se ocuparem das coisas em si e, por outro, a descrição das coisas  correspondentes.  Talvez ainda não possamos escrever um léxico que seria puramente  semiológico porque os utilizadores têm uma outra exigência. Eles desejam igualmente ser  informados sobre as coisas; eles desejam que o dicionário seja uma pequena enciclopédia, um  pequeno resumo do saber sobre as coisas: o que é tal coisa? (…), e não: o que significa tal  palavra?
Existe uma espécie de oposição. Por um lado, há pessoas que dizem: a vida, que dá  origem ao vocabulário, é muito mais rica do que todos os sistemas que podemos  aplicar ao vocabulário. Por outro, alguns apoiam-se sobre uma lógica, na hipótese  segundo a qual  podemos partir de uma entidade geral que se vai subdividir em  entidades cada vez mais particulares.
P.R.: Aquilo pelo que os filósofos se interessam, mais, é a relação entre o funcionamento da  linguagem comum e  o da  linguagem científica. Porque a linguagem comum não funciona  segundo as exigências da linguagem científica, ela funciona ou por defeito,  ou  por excesso.  Falta-lhe o rigor, o que chamamos a univocidade, isto é, o facto de uma palavra não ter  uma significação única. Mas justamente, se toda a linguagem fosse unívoca, não poderíamos servir-nos dela. Poderíamos fazê-lo apenas para tratar alguns tipos de problemas que exigem essa  univocidade. Mas a conversação ordinária, acerca das coisas da vida, supõe uma linguagem de  uma extraordinária subtileza. A  mesma palavra tem significações diferentes segundo os  contextos. É a nossa habilidade em actualizar uma significação de uma palavra apropriada num
contexto o que constitui a arte de falar. Digo bem, uma arte e de modo algum uma ciência.
Qual seria o papel da filosofia em relação a esse critério?
P.R.: Seria, creio, legitimar cada um dos usos da linguagem em certos usos apropriados. Ela  demonstraria a legitimidade, por exemplo, do discurso poético, do discurso comum ou do  discurso científico em relação a um certo projecto de utilização da linguagem. Falava-vos há  pouco de linguagem cindida. Esta cisão revelou a imensa riqueza da linguagem e a forma como  ela responde com uma flexibilidade extraordinária a necessidades que não podem, talvez, ser  recenseadas. Esta ideia, aprendemo-la sobretudo com Wittgenstein, na sua segunda filosofia.  Ele afirmava: «Os jogos de linguagem são formas de vida e são múltiplos, isto é, incontáveis.» Notem o caminho um pouco «nostalgia hegeliana» que toma a nossa conversa. Em lugar de  lamentar as grandes sínteses do passado, devemos talvez lançar-nos agora na diversidade. Não  é forçosamente a morte da filosofia, mas uma outra forma de filosofar. Ela levará muito mais  em conta a diferença dos usos da linguagem e igualmente da enorme variedade dos  progressos humanos que se exprimem quer pela ciência como pela técnica, pela poesia, pela  política, etc. Deveríamos repor, em resumo, a variedade e a diferença.
Passemos, se permitir, à relação da filosofia com a história. Após o instantâneo que é  o linguístico, poderemos examinar a dinâmica temporal em relação com a filosofia. 
P.R.: Creio que esse é um campo muito importante. Também a história sofre o que eu acabei  de chamar o caminho do método. A história deve ser cada vez mais científica. Ela serve-se de  estatísticas, faz triagem de documentos, etc. A sua tentativa é criar uma história objectiva. A  tarefa da filosofia é dizer que isso não pode suceder completamente, pelo facto de nós  próprios fazermos parte, historiadores, da história que contamos. A cada nova época, nós  encontramo-nos numa outra relação,  numa relação nova, com os acontecimentos narrados  pelas suas testemunhas, os historiógrafos. Esta relação com o nosso passado, que precede o  domínio  dos documentos pelo historiador actual, é o que alguns filósofos chamaram  de historicidade. Há, por conseguinte, uma condição histórica da existência humana que precede  o conhecimento histórico. Aqui, o problema filosófico é o da relação entre a condição histórica  do homem e o conhecimento histórico, concebido como um esforço para tratar a história  científica e objectivamente. Pensemos no  problema do qual partimos no início da nossa  conversa. Era exactamente um problema de condição histórica: qual é o nosso grau de  afastamento em relação às nossas raízes? Essa espécie de distanciação, essa colocação à distância, é um drama que se situa, não ao nível da história que se conta mas da história que  se vive e se faz.
Quando fala de «raízes», está a pensar apenas no curso da história ou ainda nas  relações da religião e da filosofia?
P.R.: Quando eu penso em «raízes», eu penso na nossa dupla ou tripla herança grega e  judaico-cristã. Seremos capazes de reactualizar indefinidamente essas heranças ou estarão elas esgotadas?  Esta é  uma das questões mais  fundamentais da época contemporânea.  Chamamos «niilismo» à convicção de que a herança está esgotada,  de  que o seu poder  simbólico se esgotou. Sou daqueles que pensam que a tarefa da filosofia é de a reactualizar, e  que nada jamais se perde.
O esforço a fazer será extremamente custoso; não se trata mais de uma repetição, mas  verdadeiramente de reinvenção. É o que eu chamo de hermenêutica.
Não deveria o objecto da filosofia académica ser uma «reflexão sobre as ideias e as  categorias» utilizadas quer pelas ciências quanto pelas actividades concretas  (políticas, sociais, artísticas, etc.); por outras palavras, não deveria ela ser uma  reflexão que poderemos chamar de «segundo grau» ou «transcendente» sobre as  actividades científicas e práticas? Em que sentido a filosofia poderia exercer uma  função social?
P.R.: Creio que a filosofia tem também aí uma tarefa fundamental. Peguemos na questão  política. A ciência política reflecte a um novo nível. Ela supõe que o homem está já implicado  em instituições e que essas instituições têm uma história. O problema do filósofo aqui é o de  saber o que é entrar numa instituição. Será que o homem existir fora do meio institucional? A  questão não é de todo especulativa. É uma das questões  chave, tão importantes quanto  aquela que invoquei há pouco: também aqui, é preciso examinar o esgotamento eventual das  nossas heranças culturais.  A síntese da liberdade e da instituição quebrou-se. Muitas  instituições sobrevivem: elas estão como mortas, tecnocratizadas e petrificadas.  Funcionam
para si próprias. Por outro lado, muitos indivíduos procuram a sua liberdade  completamente  por fora de um meio institucional. Isto é verdadeiro para o casamento e  igualmente para a  relação com o mundo industrial, tecnológico. Vejo  muitos  jovens, homens e  mulheres,  sonhando  com uma espécie de liberdade selvagem. O movimento ecológico pode contribuir  muito  para  o  encontrar  de  uma relação pré-institucional com as coisas, com a vida, com a  natureza. Uma das reflexões fundamentais, que nos fará sair um pouco do aspecto linguístico  do debate anterior, seria de retomar este problema da entrada na instituição.  Como pode o  homem ser livre sem ter o que Rousseau chamou justamente «uma liberdade civil que trocaria  pela sua liberdade selvagem?» Como poderiam as instituições reflectir a nossa necessidade de liberdade? Como evitar que toda a instituição apareça nos dias de hoje como exterior, como  um quadro que é preciso aceitar sem compromissos?
Mas será que ninguém propõe um substituto?
P.R.: Isso acontece igualmente  pelo facto  de  os  dirigentes não terem mais objectivos, não  terem projectos.  O que me espanta, é o facto de se viver sobretudo numa sociedade sem  projecto, que se perpetua por velocidade adquirida. A sociedade tecnológica é uma sociedade  cancerosa, como uma estrutura que se alimentaria de si própria. Acusamos os jovens de  quererem destruir e de nada proporem. Seria preciso afirmar, inversamente, que é a  sociedade que não tem projecto. Todo o seu projecto é  o  de continuar a mesma coisa, em  particular, para a  sociedade industrial. Esta não tem outra finalidade senão o seu próprio  crescimento. A ideia de crescer 4 ou 5% todos os anos, logo de duplicar todos os 20 anos, não  é um projecto. Isso faz igualmente parte do «niilismo». Uma tal sociedade vive do nada. O
niilista não é aquele que fala do niilismo, é aquele que não fala dele, que não sabe o que está  em causa no niilismo, que vive no nada.
A crise da filosofia releva de uma crise global da cultura ocidental ou será que ela  constitui pelo contrário o motor que vai levar essa actividade filosófica a resolver a  crise?
P.R.: Não estou de acordo com muitos jovens filósofos para quem a filosofia está morta. Creio, ao contrário, que o niilismo nos permite fazer uma constatação lúcida da pobreza, da miséria  na qual vive esta sociedade que esgotou os seus fins, que esgotou os seus ideais. Mas  confessar este facto é um acto de esperança: é escavar por baixo de muitos tecidos mortos  para encontrar os tecidos vivos. Aquele que não sabe que se movimenta num ambiente  necrosado não é portador de qualquer esperança; ele agarra-se simplesmente ao que existe.  Pelo contrário, a capacidade de escavar os escombros e os destroços é um acto positivo. Não  creio que Nietzsche, com a sua vontade de poder, com o super-homem e o eterno retorno, nos  ofereça uma solução. O que ele nos deu a pensar foi a necessidade de ligar o niilismo à sua
ultrapassagem. O nosso problema reside em encontrar na vida e no pensamento recursos de  ultrapassagem do niilismo. Eis como me afasto de inúmeros jovens filósofos muito pessimistas  que permanecem no niilismo. Posso dizer que o único recurso está talvez em transpor o hiato  da distância em ordem a reactivar as heranças do passado. Creio bastante na possibilidade de  renovar as heranças tradicionais da Antiguidade, porque não podemos ter «futuro» se não  temos «passado». Não podemos ter esperança se não temos memória. Mas é preciso refazermos uma memória que não seja repetitiva mas, pelo contrário, que seja criativa. Esta é  uma das finalidades da filosofia.
Será que podemos dizer que a religião moderna sofreu o mesmo fenómeno, isto é, uma espécie de cristalização institucional?
P.R.:  Sim, mas é preciso ter uma visão  bastante  mais mundial.  Tal  como a filosofia é um  fenómeno ocidental, a religião é um fenómeno mundial. É preciso reencontrar, reactualizar,  com Eliade, o fundo arcaico, mítico, é preciso enriquecer-nos junto das tradições orientais e  repensar ao mesmo tempo o budismo, o cristianismo, o judaísmo, o islão … Uma das tarefas da  filosofia,  é ainda a seguinte:  tomar como um todo a nossa herança religiosa e  sair  dos  compartimentos sectários e mesmo confessionais.
Sim, porque, nomeadamente, os  atributos das diferentes religiões são hoje percebidos como uma contradição com a própria religião…
P.R.:  Sim, absolutamente. Mas eu  penso que já não é preciso exigir à religião a coerência  aparente da ciência. Não é preciso tratá-la como uma ciência, mas respeitar a sua grande variedade simbólica, que oferece pólos de identificação muito variados. Mesmo no interior da  tradição cristã, o pólo de identificação  representado pela Virgem não é de modo algum  semelhante àquele que foi representado por  Cristo triunfante nos tímpanos das catedrais.  Creio que é necessário preservar essa espécie de contraste simbólico contra a identificação,  quero dizer contra a redução ao idêntico.
Iria ao ponto de dizer que transformar a religião numa espécie de filosofia seria um  grande erro?
P.R.: Sim. Quanto a este assunto, estou próximo de Wittgenstein, dado que é preciso respeitar  a diversidade dos jogos de linguagem em ordem a cada um encontre o seu lugar. Talvez um dia  um novo Hegel possa refazer a síntese mas o nosso tempo é, ao contrário, o da diferença, o do  respeito pelas diferenças das formas de linguagem e  de vida.  Esperamos que nesta lixeira,  irrompa uma flor! O nosso erro foi confundir Deus com uma filosofia dominante. Neste aspecto estou totalmente  de acordo com Nietzsche quando ele diz que ter feito de Deus um ideal, uma unidade  suprema, foi a origem do niilismo. Criámos qualquer coisa de imutável, enquanto teria sido  preciso talvez respeitar a diferença inicial do hebreu e  falado  do grego. Essa síntese está,  talvez, morta do ponto de vista cultural.
Será que podemos colocar a questão do futuro da filosofia?
P.R.: É aqui que eu volto à distinção que fazia há um bocado: futuro institucional ou destino da  filosofia. Efectivamente, a filosofia está assaz ameaçada na sua existência institucional devido à sua inutilidade em relação às ciências e pelo facto de que as outras formas do saber não lhe  exigem mais nada. Diria que os filósofos, em lugar de acusar os outros, deveriam acusar-se de  terem falado para si mesmos em vez de se terem ocupado em escutar as ciências.
Quanto ao destino da filosofia fora da instituição, porque ela pode existir fora da instituição,  eu recuso toda a espécie de profecia nietzscheana, heideggeriana ou outra. Basta que surja um  grande filósofo para que todas as nossas previsões sejam falsas. Será que se poderia prever  Hegel a partir do século XVIII?  Existe aqui  uma criação de pensamento que não pode ser  programada. Há muitos indivíduos que fazem filosofia, mas muito poucos grandes filósofos. Diria que a nossa tarefa, no intervalo de dois grandes filósofos, é manter a memória e  trabalhar de forma honesta e séria, com o que Nietzsche chamava «probidade  intelectual»
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2 Comments

  1. A crise da filosofia? Por favor! Talvez seja a crise da filosofia tal como o entrevistador a concebe e o próprio Ricoeur a pratica. Falar de crise da filosofia numa das épocas em que a filosofia está mais pujante do que nunca e em que o tal “diálogo” da filosofia com outras áreas e ciências é mais evidente dá algo que pensar.

  2. Só que há um detalhe, Aires Almeida: essa entrevista aconteceu em 1976. De lá para cá, será que não houve uma mudança positiva na filosofia? Será que essa crise não foi vencida?

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