Kant e o princípio da felicidade 2

Satisfazer ao mandamento categórico da moralidade está sempre em poder de cada um; satisfazer ao preceito empiricamente condicionado da felicidade só raramente é possível, e muito menos a todos, mesmo se só em relação a um único propósito. A causa é que, no primeiro caso, se trata apenas da máxima, que deve ser autêntica e pura; no segundo, porém, trata-se das forças e do poder físico para tomar real o objecto desejado. Um mandamento que ordenasse a cada um procurar tornar-se feliz seria uma loucura; com efeito, jamais se ordena a alguém o que ele quer inevitavelmente por si mesmo. Seria necessário prescrever-lhe, ou antes, apresentar-lhe simplesmente as medidas a tomar, porque não pode tudo o que quer. Ordenar, porém, a moralidade sob o nome de dever é inteiramente racional; pois, nem todos obedecem de boa vontade aos seus preceitos, se eles se opõem às inclinações (…).
Aquele que perdeu no jogo pode exasperar-se consigo mesmo e com a sua imprudência, mas se está consciente de ter feito batota (embora assim tenha ganho) deve desprezar-se a si mesmo, logo que se compara com a lei moral. Esta deve, pois, ser algo de inteiramente diferente do princípio da própria felicidade. Com efeito, ter de dizer a si mesmo: sou um miserável. Embora tenha enchido a minha bolsa, exige um critério de juízo diverso do de se aprovar a si próprio e dizer: sou um homem prudente, porque enriqueci o meu cofre.
Kant, Crítica da razão prática, tr. Artur Morão, Edições Setenta, Col. Grandes Filósofos, pp. 181, 182.
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