Os críticos do utilitarismo nem sempre podem ser acusados de o representarem a uma luz desonrosa. Pelo contrário, aqueles que têm uma ideia minimamente justa do seu carácter desinteressado encontram por vezes uma falha no seu padrão, considerando-o demasiado elevado para a humanidade. Dizem que ordenar que as pessoas ajam sempre com o objectivo de promover os interesses gerais da sociedade é exigir demasiado. Mas dizer isto é perceber mal o próprio significado de um padrão moral e confundir a regra da acção com o seu motivo. Compete à ética dizer-nos quais são os nossos deveres, ou por meio de que teste podemos conhecê-los, mas nenhum sistema de ética exige que o único motivo do que fazemos seja o sentimento do dever; pelo contrário, noventa e nove centésimos de todas as nossas acções são realizadas por outros motivos – e bem realizadas, se a regra do dever não as condenar. É extremamente injusto para o utilitarismo que esta incompreensão específica suscite uma objecção, visto que os moralistas utilitaristas foram além de quase todos os outros ao afirmar que o motivo, embora seja muito relevante para o valor do agente, é irrelevante para a moralidade da acção. Aquele que salva um semelhante de se afogar faz o que está moralmente certo seja o seu motivo o dever, seja a esperança de ser pago pelo incómodo; aquele que trai um amigo que confia em si é culpado de um crime, mesmo que o seu objectivo seja servir outro amigo relativamente ao qual tem maiores obrigações. Mas limitemo-nos às acções praticadas pelo motivo do dever e em obediência directa ao princípio: é uma incompreensão do modo de pensar utilitarista julgar que ele implica que as pessoas devam fixar a sua mente numa generalidade tão grande como o mundo ou a sociedade no seu todo. A grande maioria das boas acções não tem em vista o benefício do mundo, mas o de indivíduos, a partir dos quais se constitui o bem do mundo; e nestas ocasiões os pensamentos do homem mais virtuoso não precisam de ir além das pessoas específicas envolvidas, excepto na medida em que lhe seja necessário assegurar-se de que, ao beneficiá-las, não está a violar os direitos – isto é, as expectativas legítimas e autorizadas – de qualquer outra pessoa.
Mill, Utilitarismo, tr. Pedro Galvão, Porto Editora, 2005, pp. 58-60.
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