O BOSÃO DE HIGGS E O LIVRO DO GÉNESIS

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Quem, no passado dia 10, se não sentiu entusiasmado com o sucesso do início da megaexperiência em curso através do megaacelerador de partículas no CERN, na fronteira entre a Suíça e a França? Há um modelo-padrão na Física, mas há uma partícula que falta, o famoso bosão de Higgs. Ela está prevista pela teoria. Mas, como disse o físico Carlos Fiolhais, ela pode não aparecer. “E podem aparecer outras partículas, o que significaria que a teoria actual teria de ser revista”. O próprio cientista deixa-se fascinar pela “imaginação da Natureza”. De qualquer forma, o conhecimento humano do Universo avança e está em expansão..

É natural que também os crentes sejam arrastados pelo entusiasmo da investigação e se esforcem por fazer avançar o conhecimento da realidade a nível científico. No caso cristão, trata-se mesmo de uma exigência da fé. De facto, no Evangelho segundo São João, está escrito que “no princípio havia o Logos (Razão, Palavra); o Logos estava em Deus e o Logos era Deus. Por Ele é que tudo começou a existir”. Isto significa que, se o mundo foi criado pelo Logos, o mundo é racional e deve ser investigado racionalmente pelos seres humanos.

Frente ao carácter gigantesco da experiência em curso, que nos deveria levar à máxima proximidade do que se seguiu ao Big Bang, alguns cientistas chegaram a utilizar linguagem quase religiosa para a designação do bosão de Higgs, dando-lhe o nome de “partícula de Deus”. O físico Michio Kaku escreveu: “Esta máquina, o superacelerador, levar-nos-á tão perto quanto humanamente é possível à maior criação de Deus, a Génese. É uma máquina da Génese, concebida para estudar o maior acontecimento de toda a história: o nascimento do Universo”. Neste enquadramento, o Prémio Nobel da Física Steven Weinberg disse que as descobertas esperadas podem diminuir a importância de Deus na nossa compreensão do Universo.

Penso que quem tem razão é Carlos Fiolhais, quando diz que “não haverá consequências para as crenças religiosas, pois desde o tempo de Galileu que a ciência é uma coisa e a religião é outra”. Como eu disse também no dia 10 à TSF e à SIC-Notícias, a ciência não é crente nem é ateia. É pura e simplesmente ciência e, portanto, quer crentes quer não crentes vão para a ciência em pé de igualdade, com métodos científicos. A ciência não demonstra a existência de Deus nem a sua não existência. A razão é simples: Deus não é objecto de ciência, pois não é da ordem do verificável empiricamente.

Há cientistas crentes e cientistas ateus ou agnósticos. O que se passa é que, no limite, há uma pergunta que transcende a ciência: porque há algo e não nada? Porque houve o Big Bang? Qual o sentido de tudo?

Aqui, já não se trata de ciência, pois é uma questão filosófica e religiosa: o mundo cria-se a si mesmo e explica-se por si mesmo ou há um Deus transcendente e pessoal, criador? Face a esta pergunta, crentes, ateus e agnósticos não interpretam o mundo de uma determinada maneira pelo facto de o serem; o que se passa é o contrário: uns são crentes e outros ateus ou agnósticos, porque a interpretação religiosa e a interpretação ateia ou agnóstica lhes parece, respectivamente, mais adequada, consistente e razoável.

Há fé, mas com razões. A ciência no sentido positivista não detém o monopólio da razão. A razão tem múltiplas dimensões e não se esgota nas ciências lógico-empíricas. Como disse Bento XVI, na semana passada, no Colégio dos Bernardinos, em Paris, na presença de grande número de intelectuais, é próprio da razão perguntar por Deus e “uma cultura puramente positivista, que remetesse para o domínio subjectivo, como não científica, a pergunta por Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, um fracasso do humanismo”.

Quanto ao Génesis, primeiro livro da Bíblia, que agora seria definitivamente arrumado, é preciso dizer que se trata de um livro religioso e não de ciência: utiliza linguagem mítico-simbólica para falar de Deus criador. Os crentes há muito deveriam saber isso. Quem quiser lê-lo à letra habita ainda o universo do ridículo.

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