A noção da existência entre os Côkwe, Kimbûndu, Kôngo, Nyaneka, Umbûndu ou vulgo entre o Muntu-angolano, é interessante per si expressa. Vamos aqui tentar explorar o rosto do sistema metafísico muntu-angolano que regula por conseguinte a filosofia da existência.
«Eu sou neto de…»; «eu sou sobrinho de…», etc. são as respostas quando, entre o muntu angolano, é colocada a pergunta: «onduko’yove?», «dijina dye?», «nkûmbu’a ngeye nani» ou seja «qual é seu nome?». Nota-se que os angolanos se apresentam pela sua ascendência. Também é muito comum ver os angolanos casar seus futuros filhos muito antes de estes nascerem. Isto é, programam o que materialmente não existe; ou seja, as ideias pré- -substanciem materialmente. Sendo assim é bom sublinhar:
1) A pré-existência absoluta: o exemplo das crianças que são casadas sem portanto existirem de concreto;
2) A pré-existência passiva: o facto de os angolanos negarem suas existências, embora gozam plenamente de «Ergo sum», e pretenderem existir em nome dos seus ascendentes.
Como se pode notar, a vida é aqui definida metafisicamente: começa-se pela mente e palavra (metafísica), passa-se pela concretização material (física) e volta-se para mente depois da morte (metafísica). Nascer e morrer são as partes físicas da existência passiva do Ser Humano cujo objectivo principal é preparar a sua verdadeira existência. Para melhor explicitar, convém compreender «quem é Ser Humano»?
O termo genérico é muntu (pessoa, individuo independentemente do sexo). Esse termo significa em Nyaneka «o possuidor de omu-twe» (twe cabeça é a forma metafórica de: conhecimento, inteligência, sabedoria, etc.). Em Umbûndu temos omu-ntu. É bom assinalar que ntu (cabeça) deriva do verbo oku-tuwa que significa habituar, acostumar, usar no sentido de que o ‘ntu’ significa algo que conhece os hábitos, costumes e usos através da socialização. Em Kikôngo, tuwa significa edificar algo ou alguém. O variante tubama é «encher até ao limite» ou seja perfazer, «estar na plenitude», «elevar», «encher completamente» (Laman:1936,p.988). Isto é, a construção da cabeça é questão do tempo, razão pela qual bituba significa também «tempo» ou «período». Quer dizer que omuntu é aquele que é “iniciado na sua plenitude”, quer dizer deus em minúsculo. O bebé omuñkayi-ntu ou omuñkahi-twe é a “pessoa em processo da sua plenitude como iniciado”. Por isso, o seu corpo é chamado olu-heve, ehivivi. Somente depois da iniciação que a pessoa entra na sociedade e assume em plenitude a sua qualidade de muntu. Mas nem com isso começa a existir, estando ainda na pré-existência relativa ou existência passiva.
A explicação mitológica da origem do Homem (criação do mundo por Huku, Kalûnga, Suku, Nzâmbi) liga o material com o imaterial. O mateiral está ao alcance do homem sem recurso aos terceiros, assim como o corpo que, na verdade, não é preciso algum aparelho para evidenciar sua existência: olu-tu é o corpo duma pessoa viva, com seus sentidos a funcionar normalmente. Razão pela qual ainda subsiste a partícula tu, tal como nos Kôngo: nitu. O corpo sem sentido (cadáver, por exemplo) é endindi ou omutumba em Umbûndu/Nyaneka. É diferente do corpo duma criança (ehivivi) assim como do corpo de um animal (ovimpha). Nos Côkwe, o ser humano é o resultado da experiência que lhe faz, naturalmente, uma pessoa boa: thù segundo Barbosa, significa «condição (estado ou característica) do ser humano» e ao mesmo tempo «bondade, humanidade» (Barbosa: 1989,p.608). Também é o caso de Kôngo, Kimbûndu e Nyaneka.
O sistema metafísico muntu-angolano responde a um padrão que, para além de ser descoincidente em relação ao sistema aristotélico em pontos essenciais, impossibilita a leitura da filosofia dita africana ou negro-africana iniciado no projecto tempelsiano consoante os instrumentos cartesianos, tal como tem feito habitualmente os formados em filosofia, entre eles, Bilolo, Kagame, Kwasi Wiredu, Mudimbe, até Bidima, Kwame Apphiah, Odera, etc. todos, netos e bisnetos de Tempels.
Bidima ao apresentar ética da parábola, explica por exemplo que a «doença é o caminho para cura» e não é tida como uma queda anatómica. Kimpianga Mahaniah, a sua vez, apresenta a morte como ascensão do muntu a divindade (exisência) sem ni-tu, razão pela qual os rituais fúnebres se confundem com as festas. Ambos autores ajudam-nos a perceber quanto a existência, no pensamento africano, vai além da física.
Existir: oku-li, oku-li-ko (viver): «Ambalau eheneye k’ouye, ame ndyili-ko-ale: Eu já existia antes de Abraão vir ao mundo» (Da Silva: p.229). Encontramos li em Côkwe (Barbosa: 1989,p.271). Tem também oku-kala: estar, residir, etc. Em Umbûndu é a mesma coisa para além dos termos como ‘fwima’ (viver, respirar) e, genericamente, oku-kala (estar) é preferido. Oku-kala que é presente em quase todas populações angolanas específica que a ‘missão humana’ consiste em “existir” depois de acumular os ingredientes da compreensão da natureza = ñtu, ñtwe. Em Kikôngo por exemplo, ku-kala significa: a) ser, viver, b) existir, restar, etc. Di-kala, portanto, quer dizer tempo, ou seja o tempo passado, as vezes como advérbio: há muito tempo, já. Exemplo: kala kafwa: “já morreu há muito tempo”. Tudo indica que ñtu, ñtwe é produto do tempo ou seja da “longa existência”. Razão pela qual o possuidor dessa “compreensão da existência” chama-se muntu, omuntu: pessoa que possui o conhecimento da existência.
O Direito à vida, na verdade, é a escravidão do ser humano pelo trabalho para a sua sobrevivência. Sem trabalho não se vive. Para o muntu-angolano, trabalhar se traduz por exercer uma actividade sobre o solo, e isso justifica-se perfeitamente com o povo agricultor/caçador. Mas o sistema metafísico perante a terra tem uma explicação diferente e altera a conotação da versão existencial sobre «Direito Humano» que está intimamente ligador ao «trabalho». Trabalho está ligado com a terra. Osi, Oci, Ohi, Nsi, Osi são os termos em línguas angolanas (Umbûndu, Côkwe, Nyaneka, Kikôngo, Kimbûndu) para dizer terra ou chão mas também país. Os termos derivam de uma mesma raiz, o verbo oku-sikila (hospedar-se em Umbundu), ku-cihila (abrigar-se em segurança em Côkwe), oku-hikula (hospedar em Nyaneka), ku-sikila (fundar as bases de viver, de conviver em kikôngo) e kusila ou ku-sikilila (abrigar, preservar, hospedar, respeitar as normas de abrigo em kimbûndu). Isto é, em línguas angolanas, a TERRA que literalmente significa o nosso abrigo. Por essa razão a Terra pertence a comunidade e não a um indivíduo singular. «Kyame i vwa, kyeto ka vwa ko» ou seja o que é meu acaba, mas o que é nosso não acaba porque «Mbôngo mu ñtoto, fwa dya kânda, ka yidyânga muntu mosi ko», o que produz a terra (assim como a Terra por si) pertence a comunidade. Ninguém poderá atribuir-se dela individualmente. O caso é Côkwe, Umbûndu…
Colocando a questão da identidade, nota-se a predestinação de muntu angolano que antes de nascer, dá-se-lhe nome para além da sua nascença ter um «lugar no aparelho social» com um «fim já prognosticado». Justifica-se aliás os casamentos antecipados mesmo antes da «existência» dos «noivos» que ainda são «pensamentos feéricos». O homem não escolhe o seu destino porque é inserido num programa já predestinado por aqueles que viveram antes dele. E se voltamos até o primeiro que existiu, veremos o nome de Nzâmbi, Suku, Kalunga constituir o pano do fundo. A ele, é reservado a predestinação junto daqueles que já integraram a santidade (mortos). Embora o pensamento da existência material tenha condicionado os novos padrões do muntu-angolano actual, três questões ainda são pertinentes:
1) Porque ainda prevalece a noção de nduko, dijina, ñkûmbu?
2) Porque, apesar da colonização, a noção do nascimento, vida e morte permanecem cúmplices da pré-existência que nos leva a consultar kimbandeiros ou a pretensão de conhecer o que vai nos acontecer antecipadamente?
3 Porque a noção da terra, apesar das fronteiras e leis estabelecidas depois da colonização, não radicou uma nova existência do muntu-angolano perante o oci/nsi?
Vamos parafrasear com Appiah (In my father House) que identifica a «raça» como dispositivo organizador dos primeiros pensamentos filosóficos (pan-africanismo: racialismo, racismo extrínseco e intrínseco) e, na sua opinião, determina veículo obrigatório das reflexões subsequentes. Aliás, afirma que «toda identidade é construída e histórica» observando que as identidades africanas «pressupõem falsidades demais» (Apphia:1993,p.243). Tal pensamento instrumentalizado pelo existencialismo não parece satisfatoriamente compatível ao sistema metafísico da existência no pensamento muntu-angolano. O muntu, ao contrário do bantu de W. Bleek, é toda pessoa dotada da inteligência seja ele ndombe ou mundele. A sua discrepância não implica alguma oposição. A oposição não existe, mas sim a justaposição (já referenciado pelo Sen-ghor). De modo que o racismo (tribalismo=racialismo?) na boa verdade, não tem cabimento na concepção da existência muntu-angolana.
Na filosofia da existência do muntu-angolano a oposição não existe, mas sim a diferença, discrepância e alternância que se efectuam numa justaposição natural. O sistema metafísico angolano suste.
Patrício Batsîkama