A eutanásia e a distanásia, como procedimentos médicos, têm em comum a preocupação com a morte do ser humano e a maneira mais adequada de lidar com isso. Enquanto a eutanásia se preocupa prioritariamente com a qualidade da vida humana na sua fase final – eliminando o sofrimento –, a distanásia se dedica a prolongar ao máximo a quantidade de vida humana, combatendo a morte como o grande e último inimigo.
Estas caracterizações iniciais da eutanásia e da distanásia, apontando para os valores que querem proteger, podem servir de ponto de partida para nossa discussão. A primeira grande questão para ambas é a morte do ser humano e o sentido que esta morte apresenta, principalmente quando acompanhada de fortes dores e sofrimento psíquico e espiritual. Até um momento relativamente recente na história da humanidade, a chamada morte natural por velhice ou doença simplesmente fazia parte da vida e, em grande parte, fugia do nosso controle. A morte violenta, por outro lado, vem sendo aperfeiçoada pela maldade humana durante séculos e já alcançou requintes de perversidade e capacidade de mortandade em massa jamais sonhados no passado.
Muitos dos receios que surgem na discussão sobre eutanásia e distanásia refletem a consciência que se tem de tanta violência e, no contexto da medicalização da morte, são resultado do crescente poder moderno sobre os processos ligados com a chamada morte natural e o espectro da mão curadora do médico se transformar em mão assassina.
Diante destas ambigüidades, para maior clareza na discussão, parece-me oportuno distinguir entre a morte provocada que acontece num contexto terapêutico sob a supervisão de pessoal médico devidamente habilitado e todas as outras formas de morte violenta, sejam acidentais, sejam propositais. Esta distinção nos proporcionará proporcionará uma maior precisão terminológica e maior segurança nas decisões que precisam ser tomadas, seja como membro da equipe médica, seja como paciente, familiar ou responsável legal.
No período pré-moderno, o médico e a sociedade estavam bastante conscientes de suas limitações diante das doenças graves e da morte. Muitas vezes, o papel do médico não era curar, mas sim acompanhar o paciente nas fases avançadas de sua enfermidade, aliviando-lhe a dor e tornando o mais confortável possível a vivência dos seus últimos dias. De modo geral, o médico era uma figura paterna, um profissional liberal, num relacionamento personalizado com seu paciente, muitas vezes um velho conhecido. Os ritos médicos foram acompanhados de ritos religiosos e tanto o médico como o padre tornaram-se parceiros na tarefa de garantir para a pessoa uma morte tranqüila e feliz. Com a modernização da medicina, novos estilos de praticar a ciência e novas atitudes e abordagens diante da morte e do doente terminal emergiram.
O paradigma tecnocientífico da medicina se orgulha, com bastante razão, diante dos significativos avanços obtidos nos últimos cem anos nas ciências e na tecnologia biomédica. Atualmente, doenças e feridas antigamente letais são curáveis desde que tenham tratamento adequado. O orgulho, porém, facilmente se transforma em arrogância e a morte, ao invés de ser o desfecho natural da vida, transforma-se num inimigo a ser vencido ou numa presença incômoda a ser escondida.
Outro paradigma da modernidade, bastante ligado aos desenvolvimentos tecnológico e científico, é o paradigma comercial-empresarial. O advento da tecnologia, novos fármacos e equipamentos sofisticados tem um preço, e às vezes bem alto. Este fato deu margem para a evolução de um estilo de medicina onde o médico deixa de ser um profissional liberal e se torna um funcionário, nem sempre bem pago, que atua no contexto de uma empresa hospitalar. Principalmente no setor privado, a capacidade do doente terminal pagar a conta, e não o diagnóstico, é o que determina sua admissão como paciente e o tratamento a ser subseqüentemente empregado. Já que, nesta perspectiva, o fator econômico predomina, é o poder
aquisitivo do freguês, mais que a sabedoria médica, que determina o procedimento terapêutico – a infiltração desta mentalidade nota-se mesmo nos grandes centros de atendimento
médico mantidos pelos cofres públicos.
Um terceiro paradigma da medicina, o paradigma da benignidade humanitária e solidária, reconhecendo os benefícios da tecnologia e da ciência e a necessidade de uma boa administração econômica dos serviços de saúde, procura resistir aos excessos dos outros dois paradigmas e colocar o ser humano como o valor fundamental e central na sua visão da medicina a serviço da saúde, desde a concepção até a morte. Este paradigma rejeita a mistanásia em todas as formas, questiona os que apelam para a eutanásia e a distanásia e, num espírito de benignidade humanitária e solidária, procura promover nas suas práticas junto ao moribundo a ortotanásia, a morte digna e humana na hora certa.
Um outro problema – que tem um grande peso na discussão sobre eutanásia e distanásia – é a definição do momento da morte. Em muitos casos, não há nenhuma dúvida sobre o óbito do paciente e o fato é aceito sem contestação tanto pela equipe médica como pela família. Há outros casos, porém, bastante polêmicos. A utilização de tecnologia sofisticada que permite suporte avançado da vida levanta a questão de quando iniciar e quando interromper o uso de tal recurso. A crescente aceitação da constatação de morte encefálica como critério para declarar uma pessoa morta é decisiva não somente em casos onde se precisa liberar o corpo para enterro, mas, também, para liberá-lo como fonte de órgãos para transplante.
Leonard Martin,
in Iniciação à Bioética,
Organização: Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, Volnei Garrafa, Gabriel Oselka
Conselho Federal de Medicina – Brasília