O Pensamento Português em Macau

Pedro Baptista lançou recentemente o livro “Filosofia Contemporânea Portuguesa em Macau : Introdução”, [edição Livros do Meio, Macau, 2013, 195 pp., ISBN : 978-99965-851-7-3], uma proposta com um invulgar fulgor argumentativo a merecer uma problematização mais alargada mas que não cabe neste espaço. Desde logo importa referir que Pedro Baptista é doutorado em filosofia e investigador no “East-West Institute for Advanced Studies”, de Macau , e tem atrás de si uma notável folha bibliográfica, onde naturalmente se destacam “Newton de Macedo” (2006), “A Pluralidade na Escola Portuense de Filosofia” (2010), “O Filósofo Fantasma” (2010), “O Milagre da Quinta Amarela – história da primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto” (2012) , “Um Mundo a Fazer” (2013) , tudo isso para além de diversas obras literárias e de uma esclarecida  intervenção cultural , cívica e política.

“A Filosofia Contemporânea Portuguesa em Macau : Introdução” procura traçar a cartografia do pensamento português no Território e nas palavras do autor, “Infelizmente, ou felizmente para a empresa que ora encetamos, a história das ideias e, em especial, a história da filosofia em Macau é um campo em grande parte por cultivar, pelo que procuraremos abrir portas que permitam aceder aos diferentes sectores mais especializados percorridos ou, pelo menos, marcados pela filosofia”. Por ser inovador, é também um empreendimento de risco. Esta obra tem o mérito de sinalizar caminhos e o desejo de compreender Macau sob o ponto de vista cultural e filosófico. A obra estrutura-se em cinco capítulos (da génese à expressão do pensamento ; da poesia e da filosofia ; há ou não uma filosofia portuguesa ? ; a filosofia portuguesa em Macau ; bibliografia), e por eles seguiremos o pensamento do autor que também convoca outros saberes e olhares antropológicos sob as intersecções do Oriente com o Ocidente.

 

Recordo que Camilo Castelo Branco abre os “Mistérios de Fafe”, publicado em 1868, com esta irónica epígrafe : “O dilúvio, que afogou a Europa no ano 2000, foi necessário e providencial : tanta era a corrupção daqueles povos ! Um Filósofo Asiático que há-de escrever no ano de 3521”. Este fascínio pelo Oriente é também a sedução pelas ideias do Outro, uma tensão de alteridade que não se apaga e que frequentemente não se procura estudar.

 

A filosofia na tradição grega e ocidental, percorreu em Macau quatro caminhos, três institucionais e diferentes entre si (o Colégio de S. Paulo , o Seminário de S. José e o Liceu de Macau) e o outro inteiramente livre e solto, construído por leituras autónomas, por influência de personalidades marcantes e pela  imprensa. Essas três instituições não podem ser vistas do mesmo modo como se avaliam os tropos de Sexto Empírico, mas poderemos convocar uma reflexão sobre as convergências e as divergências com a filosofia  oriental e chinesa, isto é,  se foi propiciado um defensivo  barramento estratégico, pedagógico e higiénico ou se houve uma indisciplinada fluidez nas ideias filosóficas que iam e vinham ao sabor das oportunidades. Álvaro Semedo notou, com aparente normalidade, que os compêndios do “Curso Conimbricense” eram conhecidos e estudados pelas elites chineses, pouco tempo depois de terem surgido em Coimbra. Por outro lado, também é surpreendente a influência de Silvestre Pinheiro Ferreira, homenageado pelo “Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor”, que desde o ano da sua morte, em 1846, abria com esta sua divisa : “Assim, sem comprometer os públicos interesses, se satisfará ao maior de todos eles, que consiste em que toda a verdade se diga, a quem toda a verdade é devida”. Silvestre Pinheiro Ferreira, filósofo, jurista e diplomata, viveu no Rio de Janeiro com a Corte portuguesa e prestou serviço em França, na Alemanha, na Inglaterra e na Holanda.  De resto, olhando para a bibliografia produzida década após década, século após século, em Macau,  não é piedoso nem útil mascarar alguma decepção. Como lidamos com as excepções, é isso que nos salva. Também não devemos perder de vista alguns efeitos colaterais oriundos da  jóia da coroa, Goa, que desde o século XIX possuía ensino superior, com escolas de farmácia, medicina e direito, e por arrastamento uma intensa vida cultural e uma interessante produção filosófica. Uma parte significativa da elite de Macau foi formada em Goa.

 

Pedro Baptista alinha um conjunto de personalidades (José Gomes da Silva, Wenceslau de Moraes, Mateus António Lima, Camilo Pessanha, Manuel da Silva Mendes, António Patrício, Joaquim Paço d’Arcos e Maria Ondina Braga) cujas obras são susceptíveis de merecerem uma demorada revisitação filosófica. Tem toda a razão. Contudo,  quem falta à chamada ?  Um grupo heteróclito de livres-pensadores, amigos do saber, da literatura e das artes, sinólogos e de espiritualidade ortodoxa. Pensadores com obra publicada no âmbito da ética e da moral (José Miranda e Lima, Francisco Xavier Rondina, Leôncio Ferreira) ; intelectuais cujas traduções dos clássicos chineses ajudaram a modelar o pensamento português em Macau (Pedro Nolasco da Silva, José Vicente Jorge, Luís Gonzaga Gomes, Joaquim Guerra) ; o grupo da fenomenologia da viagem  (Pedro Gastão Mesnier, Carlos José Caldeira, Adolfo Loureiro, Fernando Lara Reis) ; intelectuais que agitaram a polémica sobre o darwinismo (Lourenço Marques, António Vasconcelos, P. Costa) ; literatos que edificaram o quadro histórico-mental de uma literatura situada (José Joaquim Monteiro, Deolinda da Conceição, Henrique de Senna Fernandes, Rodrigo Leal de Carvalho); os pensadores da contemporaneidade (Ana Cristina Alves, Daniel Carlier , Jorge Morbey e Arnaldo Gonçalves) ; a estética é bem mais difícil de arrumar.  As Pastorais e outros escritos dos sucessivos Bispos de Macau, são outras fontes de um pensamento mitificador e doutrinário que não pode ser esquecido, por exemplo, D. João Paulino de Azevedo e Castro, D. José da Costa Nunes ou D. Arquimínio Rodrigues da Costa.

 

Manuel da Silva Mendes será porventura a personalidade com maior densidade filosófica, cuja obra se reparte pela filosofia chinesa, pela estética e pela filosofia social e política. As suas ideias pedagógicas também são relevantes. Os textos jurídicos permanecem completamente desconhecidos, presume-se que depositados no arquivo do tribunal, a menos que a formiga branca tenha feito a sua degustação gourmet. A reedição da sua obra continua a ser um imperativo categórico.

 

Francisco Xavier Rondina foi o pensador que mais discípulos criou . A sua influência foi enorme na frente educativa. Publicou um excelente manual escolar, “Compêndio de Philosophia Theorica e Practica Para Uso da Mocidade Portugueza na China”, em 2 volumes, impresso na tipografia do Seminário de S. José, em 1869/1870. É redutor classificar esta obra apenas como um manual escolar, porque é muito mais do que isso. Neotomista assumido, combateu denodadamente o republicanismo ateu dos discípulos de Ernest Renan e procurou instituir uma pequena comunidade de estudos sob a forma de cenáculo filosófico.

 

José Gomes da Silva, médico, botânico e investigador é a grande figura da epistemologia positivista , cuja obra nunca foi reeditada, com excepção, ironicamente, de um livro secundário, “A República de Macau : história amena” . A sua correspondência é importante para o conhecimento do ambiente social e cultural de Macau e de Timor. Outro autor a resgatar e outra obra a reeditar.

 

Mateus António Lima é neste contexto, uma carta fora do baralho. Não se lhe conhecem apetências ou trabalhos filosóficos. Quando muito, terá secretariado júris de provas orais de filosofia no Liceu.

 

A Imprensa como veículo de ideias é verdadeiramente crucial. A imprensa portuguesa tem a sua história fixada, em 1965, pelo Padre Manuel Teixeira  com o volume “A Imprensa Periódica Portuguesa  no Extremo Oriente” (reeditado em 1999) , mas suspeita-se que há outro tanto por investigar. Aguardamos o trabalho de Daniel Pires, “Dicionário da Imprensa de Macau” (em publicação pelo Instituto Cultural) para podermos apreciar a problemática na sua globalidade.

 

Pedro Baptista não descura esse pormenor : “ É o caso da imprensa e revistas editadas em Macau, em que se disseminam ideias culturais e filosóficas : O Independente, Echo Macaense, Oriente Portuguez, Lusitano, A Voz do Crente, O Progresso, A Colónia, A Juventude, O Echo do Povo, o Liberal, O Macaense, o Patriota, A Academia, A Opinião, Nun’Álvares, A Pátria, O Combate, Diário de Macau, A Verdade, Jornal de Macau, O Petardo e A Voz de Macau. A partir do acervo desta imprensa nem sempre regular, mas alinhada política e ideologicamente, será possível extrair as principais ideias filosóficas em circulação, nesta colecção ainda por explorar do ponto de vista da história das ideias e da filosofia”.

 

Mas, ainda ninguém se interessou pelo estudo da influência da imprensa estrangeira em Macau. Os jornais e as revistas vinham nos navios que traziam mercadorias e passageiros, fazendo de Macau uma cidade realmente cosmopolita. As ideias , como as notícias, chegavam pelo mar e é impressionante essa cosmovisão em versão pessoana de ode marítima. Em escassos oito anos, entre 1838 e 1846, por exemplo, é possível registar um número significativo de títulos estrangeiros : Canton Register ; China Mail ; Canton Press ; Chinese Repository ; The Friend of China ; North China Herald ; Times ; Singapore Journal of Commerce ; Singapore Free Press ; Straits Times Extra ; Estrella de Manila ; La Patrie ; Le Constitutionel ; Vienner Zeitung ; Deustche Alegemeine Zeitung ; Journal d’Havre ; Moniteur Algerien ; Moniteur de la Flotte ; Courrier des Etats-Unis ; El Comercio de Cadiz ; Esprit ; Gaceta de Madrid ; L’Ami de la Religion ; Montly Times ; Morning Chronicle ; Atlas for India ; El Occidente ; Birmingham Post ; United Service Gazette. A lista termina aqui mas poderia continuar. Desses títulos, pelo menos dois [ Canton Register ; Chinese Repository ] estão digitalizados e disponíveis para o leitor interessado . Artigos destas publicações foram traduzidos, comentados  e lidos, quiçá recortados, pelos leitores da comunidade portuguesa de Macau, abrangendo temas tão diversos como a política, a literatura, a educação, a filosofia, as crónicas de guerra, a crítica literária, o humor e as anedotas, a história, as novidades científicas, a química, os folhetins, a poesia, a música ou a religião. Imagina-se a sofreguidão com que terá sido lida a entrevista  do Mandarim Yeh,  Vice-Rei de Cantão, concedida ao Moniteur de la Flotte. A vida política do Território é frequentemente objecto de artigos e notícias no jornal The Friend of China.

 

Convém recordar que a imprensa portuguesa, no período de tempo em apreço, também era lida e transcrita : A Revolução de Setembro ; O Mercantil ; Abelha de Bombaim ; Boletim dos Estados da Índia ; Jornal dos Debates ; Jornal da Sociedade Católica ; A Ilustração ; Revista Universal Lisbonense ; Pregoeiro da Liberdade ; Heraldo ; Revista Económica ; Diário do Governo. Os leitores de Macau estavam familiarizados com artigos de Alexandre Herculano, Mendes Leal Júnior, Silvestre Pinheiro Ferreira, António Feliciano de Castilho, Cunha Rivara, Oliveira Marreca ou Silva Túlio. Não falamos da imprensa chinesa, que é outro mundo de possibilidades.

 

No Boletim do Governo da Província de Macao, Timor e Solor, de 21 de Maio de 1846, na parte não oficial, encontra-se  um longo ensaio , “Estudos philosophicos sobre a Philosophia e o senso comum”, texto não assinado, e que se estende pelas edições de 28 de Maio e de 4 de Junho. É o exemplo vivo de como a reflexão filosófica se insinuava no quotidiano dos portugueses de Macau. Em termos estéticos é de assinalar a aparição de António Feliciano de Castilho, antes da polémica do bom senso e do bom gosto, na imprensa de Macau. São textos que devem ser vistos a dois níveis , um  na qualidade de clássico perdido no romantismo, com o poema “O Ano Bom dos Romanos” e o outro na qualidade de pedagogo esclarecido, com a notável exortação “Monumento de D. Pedro”. O responsável por esta iniciativa terá sido Francisco Maria Bordalo, secretário do Governo de Macau, desde 1849, admirador confesso de Byron e esquecido literato.

 

Será legítimo pensar que toda esta actividade tenha deixado marcas na educação informal e na cultura geral dos cidadãos portugueses, abrindo horizontes, aprofundando problemáticas, importando polémicas, aprimorando as várias formas de pensar ou de sentir e criando sobressaltos cívicos quando o patriotismo ficava submergido pelo nacionalismo eurocêntrico. É um trabalho de fina hermenêutica que algum dia terá de ser feito. E com tudo isto há material de sobra para se delinear uma história do pensamento português em Macau.

 

Após este livro , infelizmente pouco conhecido em Portugal,  que é um marco na história das ideias , e que se saúda, não quererá Pedro Baptista meter ombros a um Dicionário dos Pensadores de Macau ?

 

Termino com esta ideia luminosa de Bertrand Russell : “a filosofia, por um lado, faz com que continuemos a pensar no que poderemos vir a saber e, por outro, conserva-nos humildemente conscientes de que muitas coisas que parecem factos assentes o não são”.

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