Corre o Verão de 1848. Estamos em Nova Inglaterra. Phineas P. Gage, 25 anos de idade e capataz da construção civil, aproxima-se de um precipício. Um século e meio mais tarde, a sua derrocada ainda será rica em ensinamentos. Gage trabalha para os caminhos de ferro Ruthland & Burlington e tem a seu cargo um grande número de homens. (…) Ele coordena todas estas tarefas e está à altura delas. (…) Aos olhos dos seus superiores, Gage não é apenas um outro par de braços. Definem-no como o homem «mais eficiente e capaz».
(…) E é agora que tudo se vai desenrolar. São 4,30 h de uma tarde escaldante. Gage acabou de colocar a pólvora e o rastilho num buraco e disse ao homem que o estava a ajudar para colocar a areia. (…) Distraído (…) começa a colocar a pólvora directamente com o bastão de ferro. Num ápice, provoca uma faísca na rocha e a carga explosiva rebenta-lhe directamente no rosto. (…) O ferro entra pela face esquerda de Gage, trespassa a base do crânio, atravessa a parte anterior do cérebro e sai a alta velocidade pelo topo da cabeça. (…)
A sobrevivência torna-se tanto mais surpreendente quando se toma em consideração a forma e o peso da barra de ferro: (…) o ferro que lhe atravessou o crânio pesa cerca de 6 quilos, mede cerca de um metro de comprimento e tem aproximadamente 3 centímetros de diâmetro. (…)
Phineas Gage será dado como são em menos de dois meses. No entanto, estes resultados espantosos passam para segundo plano quando são comparados com a extraordinária modificação que a personalidade de Gage está prestes a sofrer. (…)
Gage podia tocar, ouvir, sentir, e nem os membros nem a língua estavam paralisados. Tinha perdido a visão do olho esquerdo, mas a do direito estava perfeita. Caminhava firmemente, utilizava as mãos com destreza e não tinha qualquer dificuldade assinalável na fala ou na língua. No entanto (…), mostrava-se agora caprichoso, irreverente, usando por vezes a mais obscena das linguagens, o que não era anteriormente seu costume, manifestando pouca deferência para com os seus colegas, impaciente relativamente a restrições ou conselhos quando eles entravam em conflito com os seus desejos, por vezes determinadamente obstinados, outras ainda caprichoso e vacilante, fazendo muitos planos para acções futuras que tão facilmente eram concebidos como abandonados. (…) As mais severas repreensões (…) falharam na tentativa de fazer com que o nosso sobrevivente voltasse a ter um bom comportamento. (…) Sofreu uma mudança tão radica! Que os seus amigos e conhecidos dificilmente o reconheciam. Observavam entristecidos que «Gage já não era Gage».
(…) As alterações na personalidade de Gage não foram subtis. Ele já não conseguia fazer escolhas acertadas, e as que fazia não eram simplesmente neutras. Não eram as decisões reservadas e apagadas de alguém cuja mente está diminuída e que receia agir, mas sim decisões activamente desvantajosas. Pode arriscar-se a ideia de que o seu sistema de valores era agora diferente ou, se era o mesmo, não existia maneira de os seus antigos valores influenciarem as decisões que tomava. (…)
António Damásio, O Erro de Descartes
Olha, não vamos confundir a coisa e querer ver coisas onde nada há. Gage foi vítima de uma infelicidade e por isso teve sua pernsonalidade alterada, não tem nada haver com seu espírito, natureza, vontade ou coisa parecida. Sejamos claros, ele ficou doente, foi uma fatalidade e fim.
Olá, Jailson. Alterações no comportamento não são fruto de “infelicidade”, como se de acasos se tratasse. Há uma base biológica para estas alterações e é isso que o texto de Damásio procura provar. E mesmo as doenças possuem sempre uma causa. Nesta situação, a doença a que se refere tem a ver com danos permanentes e irreversíveis causados pelo acidente sofrido.
Obrigada pelo comentário.