Kant nunca disse que as boas ações têm de ser motivadas por um sentido de dever. O que Kant diz, de facto, é que, na medida em que são praticadas por um sentido do dever, as ações têm valor moral genuíno (…). Passo a explicar porquê. (…)
Kant convida-nos a imaginar um indivíduo (chamemos-lhe Zé) que passa a vida a fazer o bem apenas porque lhe apetece fazê-lo. Possui um desejo natural de ajudar as pessoas e dá-lhe muito prazer ir ao encontro das necessidades dos outros. Kant concede que as ações do Zé são «boas» e «compassivas», mas nega que tenham qualquer valor moral verdadeiro. Kant acredita que o apreço moral é um tipo de apreço muito singular.
Haverá alguma coisa de impressionante ou que inspire reverência no facto de fazer aquilo que o faz sentir-se bem? Agora suponhamos que o Zé fica deprimido [quando se confronta com a infelicidade alheia] e suponhamos que – não obstante a depressão e o facto de já não se comprazer em estender aos outros uma mão amiga – o Zé continua a praticar boas ações apenas porque sabe que é isso que está certo fazer (…); pratica boas ações «unicamente por dever». Ora, isto é impressionante – e mesmo inspirador de reverência. Quando Kant diz que as ações feitas por dever são as únicas que têm valor moral está apenas a sugerir que reservamos um tipo especial de louvor ou de apreço para as ações feitas ao arrepio das inclinações.
Repare que a versão moralmente valorosa do Zé não é propriamente a versão que gostaríamos de convidar para jantar lá em casa. Na verdade, este Zé parece uma pessoa um tanto desagradável. Preferimos de longe rodear-nos de pessoas como o Zé generoso e bem-disposto que simplesmente gosta de ajudar os outros. Assim sendo, por que motivo pensa Kant que as únicas ações com valor moral são do outro Zé deprimido? Talvez por esse Zé – o Zé com uma tal dedicação ao dever – ser o único dos dois que garantidamente fará o que deve ser feito. Kant talvez receie que as pessoas que fazem o bem apenas porque lhe apetece deixem de o fazer quando deixar de lhes apetecer. Em alternativa, se o que as leva a praticar uma dada ação é o facto de pensarem que essa é a atitude certa a tomar, então é de presumir que levarão essa ação a cabo independentemente de lhes apetecer ou não fazê-lo.
Alexander George (2008), Que diria Sócrates? Lisboa: Gradiva.
Seria interessante não dar como suposto o que é o bem e o que são boas acções. Assim, somos colocados abruptamente numa espécie de teoria do pecado ou do mérito, justamente o que precisamos de analisar. Em qualquer caso, nas questões morais, ou de ética (política, profissional, religiosa, jurídica…), estando em jogo um interesse egoístico e um sentido de dever, o foro da consciência, se não for o tribunal supremo, será o critério para ajuizar sobre o “valor moral”, que será tanto maior quanto menos coincidente for o interesse egoístico com o dever de sentido contrário. Qualquer juízo moral ojectivo deparará com a impossibilidade de acesso à consciência do sujeito. Salvaguardando isto, o valor moral de uma acção tenderá a ser inversamente proporcional, ou mais, ao interesse egoístico do sujeito da acção, se este interesse não for coincidente com o interesse que “transcende” aquele. E se for? Ou seja, praticar acções que nos fazem felizes, independentemente de serem boas acções (segundo qualquer suposto critério de bondade), terá tanto menos valor moral quanto mais nos fizerem felizes? A minha (in)felicidade é a medida do valor moral daquilo que faço ou deixo de fazer? Claro que não. A questão nem é de felicidade, mas de sacrifício. Todo o comportamento só adquire valor moral a partir de certo momento que envolve consciência e “escolha” de algum tipo ou forma de sacrifício. A felicidade até pode ser fruto disso.