Os avanços da ciência no conhecimento da transmissão da vida permitiram lançar luz numa área que tem despertado um enorme interesse nas duas últimas centenas de anos. No final do Séc. XIX os conhecimentos facultados pelos trabalhos desenvolvidos por Pasteur e pelos seus continuadores sobre a origem dos seres vivos tiveram um enorme impacto no seu tempo, despertando animosidades em muitos sectores. Foi necessário muito mais de um século para dominar com algum êxito os principais mecanismos da transmissão da vida humana. Um século no desenvolvimento da ciência actual é um período muitíssimo longo. Este lapso de tempo dá uma ideia da complexidade dos mecanismos da transmissão da vida.
A ciência parece indicar que o aperfeiçoamento da transmissão da vida nas espécies vegetais e animais resultou de múltiplas tentativas. Isto é, as alterações na informação genética que foram transmitidas aos descendentes originaram novas características nos seres vivos: uns melhoraram e outros pioraram a sua adaptação ao ambiente. A competição biológica conduziu, necessariamente, à selecção dos organismos mais aperfeiçoados que puderam então reproduzir-se utilizando com maior rendimento os meios que a natureza colocou no espaço em que habitavam. A “força da vida” é tal que permitiu a existência de um número incontável de espécies adaptadas a condições de vida extremamente hostis.
Um dos mecanismos que as formas superiores de vida utilizam para a sua adaptação ao ambiente é o da reprodução sexuada. A clonagem, ou dito de outro modo, a reprodução assexuada é um método próprio dos organismos constituídos por uma única ou por um escasso número de células, por via de regra absolutamente dependentes do meio onde vivem e muito vulneráveis às suas modificações. Todos os seres vivos superiores utilizam a reprodução sexuada. No mundo vegetal, a reprodução por estaca, bem conhecida desde tempos de que não há memória, é uma forma de reprodução artificial por clonagem utilizada quando se quer fazer réplicas de um ser vivo vegetal num ambiente ao qual se encontra excelentemente adaptado. A reprodução sexuada, por outro lado, permite mecanismos muito mais poderosos de adaptação devido à possibilidade de recombinação dos genes, facultando uma descendência com características diversificadas, que as inúmeras gerações e a selecção natural foram aperfeiçoando durante milhões de anos. A leitura da informação contida nos cromossomas humanos permitirá certamente a mais correcta história da vida na terra.
Nos últimos anos houve múltiplas referências nas publicações científicas à possibilidade de reprodução por clonagem nos mamíferos superiores. Muitas demonstraram que as células que melhor suportam a troca do seu núcleo natural por outro da mesma espécie, mantendo a sua viabilidade, são as células precursoras da célula sexual feminina – os ovocitos. A técnica mais praticada consiste em retirar o núcleo destas células (contendo apenas a metade feminina dos cromossomas) e substituí-lo pelo núcleo de uma célula de um indivíduo adulto da mesma espécie. O novo ser assim criado terá a mesma informação genética do indivíduo de onde o núcleo celular foi retirado. Isto é, o organismo desenvolvido será um gémeo verdadeiro do dador do núcleo celular. Em resumo, para praticar a técnica da clonagem mais usada num mamífero (como na espécie humana) serão necessárias uma célula viável retirada de um ovário, uma outra célula adulta de um outro ou do mesmo organismo à qual será retirado o núcleo a transplantar e um útero onde o pequenino ser se poderá desenvolver até poder ter a autonomia própria da espécie.
Todas estas tentativas de clonagem dos organismos superiores são experimentais, apenas menos de uma em cada cem experiências tentadas resultaram na criação de um indivíduo desenvolvido, muitas terminando em abortamentos espontâneos ou em seres vivos com deficiências orgânicas múltiplas. Admite-se que uma causa importante para esta vulnerabilidade resulte do facto do material genético retirado do organismo adulto ter perdido algumas das suas características potenciais de diferenciação, nomeadamente a possibilidade da inibição de muitos genes ocorrida no processo de formação dos órgãos do indivíduo adulto. Estas experiências apenas são possíveis num ambiente tecnológico muito evoluído exigindo um grande investimento financeiro e o concurso de especialistas que são relativamente raros nestes domínios científicos.
A clonagem reprodutora humana não é, portanto, uma novidade científica. É possível a clonagem de células humanas com material genético clonante proveniente de outro ou do mesmo ser humano com o objectivo de produzir um embrião viável através da utilização de um útero de uma mãe hospedeira (que um dia se poderá eventualmente demonstrar que poderá ser a própria dadora do material genético). Este tipo de intervenção não tem nenhum interesse científico e não tem qualquer suporte ético, sendo, portanto, uma experiência interdita. Representaria a máxima subordinação de um futuro ser humano a um capricho ou a uma obsessão de alguém, visto que estaria impressa em todas as suas células uma matriz biológica intencionalmente condicionada, provavelmente mais frágil e mais vulnerável, características que são transmissíveis à sua descendência.
A clonagem reprodutora humana foi explicitamente banida na legislação de muitos países, apesar de algumas vozes publicamente declararem a capacidade e a intenção de ultrapassar a condenação de tal prática. No nosso país, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida manifestou-se formalmente contra a clonagem reprodutora humana e a Assembleia da República acolheu o seu parecer. Portugal ratificou a Convenção dos Direitos Humanos e da Biomedicina do Conselho da Europa (Convenção de Oviedo) e também um protocolo adicional específico sobre clonagem humana reprodutiva, que formalmente proíbem tais actividades. É obrigação de cada país membro do Conselho da Europa produzir legislação que faça a regulamentação do diploma, o que ainda não ocorreu em Portugal, constituindo este facto uma grave deficiência nas leis do nosso país.
Surgem agora, ruidosamente e como factos consumados, as notícias da clonagem de seres humanos. Rumores de várias origens ocorriam às agências noticiosas. A comunidade científica tomou conhecimento, recentemente, de uma comunicação formal aos media partindo de uma bioquímica sem credenciais reconhecidas nestes domínios, contando o nascimento por cesariana de um bebé do sexo feminino obtido por clonagem a partir de um ovocito humano e de um núcleo de uma célula da pele. A mistura parece explosiva: uma seita religiosa, um conjunto de pessoas de ciência sem credenciais firmadas e uma empresa comercial que quer expandir o seu espaço de intervenção. Não sabemos se a notícia é verdadeira, visto que a documentação só será possível dentro de dias. Exactamente na altura em que um pequeno ser humano, uma nossa irmã, se for verdadeira a história que alguns contam, poderá começar uma vida difícil e penosa nas luzes da ribalta.
Alexandre Laureano Santos
Grupo Consultores CECS
Publicado em http://www.ecclesia.pt/destaque/clonagem/clonagem.htm