Toda a minha vida fui ensombrado pela questão do mal, e ainda hoje e não cesso de me interrogar acerca da contradição flagrante, incompreensível, entre a fé no Deus Amor e a existência do mal. (…)
O mais frequente é [um certo] tipo de apologias recusar a objecção de virar a manga do avesso, desculpando Deus de todo o mal e atirando a falta sobre os homens. Dito de outra forma, todo o mal proviria do homem que, pelo exercício da sua vontade e da sua liberdade, se desviaria do amor e do plano do criador para cometer o mal.
Isto é perfeitamente verdade no que toca às catástrofes que o homem provocou. Mas o argumento não faz caso dos tremores de terra, das colossais inundações na China que levam centenas de milhares de pessoas, das fomes em África, dos ciclones na América Central, etc. (…) Como explicar esta aparente indiferença do Todo-Poderoso? Como conciliá-la com o facto dele ser Amor? Ele dispõe de todos os meios e deixa serem levadas nas torrentes de lama, dizimadas por epidemias, milhares de crianças pequenas, de pais, de mães, crápulas e santos misturados? (…)
Isto é para mim, desde sempre, o tema de uma profunda e dolorosa interrogação. De uma busca, de uma súplica. Eu não posso encontrar nenhuma explicação racional para esta constatação e prefiro calar-me, diante do que permanece para mim incompreensível, do que procurar más desculpas para Deus.
Existe contudo uma coisa que eu quero dizer a este propósito. Ela não justifica em nada o mal e o sofrimento, trata-se de uma simples constatação que alimenta a minha meditação e que eu queria partilhar. Eu fui tocado na minha vida com frequência ao ver que muitas vezes o mal suscita o bem, que sempre que somos confrontados com o mal acontece que o amor se desenvolve.
Abbé Pierre, Fraternidade, tr. Miriam Lopes, Editorial Notícias, pp. 81-83.
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