O Reino Unido é o primeiro país do mundo a legalizar a geração de embriões híbridos humano-animal. Mas o impacto da nova lei deverá ir além das suas fronteiras.
Se há uma coisa em que Gordon Brown, primeiro-ministro trabalhista britânico, concorda com David Cameron, líder do partido conservador, é na necessidade de legalizar a criação de embriões mistos de animal e humano. Por razões sociais, certamente, mas também por algumas muito pessoais. Acontece que ambos vivem no dia-a-dia tragédias familiares devido a doenças dos seus filhos: um dos filhos de Brown foi afectado por uma grave doença hereditária, a mucoviscidose, e um dos filhos de Cameron sofre de paralisia cerebral e epilepsia.Mas não terão sido razões de um foro tão íntimo a motivar o voto dos muitos outros deputados de ambos os principais partidos – e não só – que aprovaram esta semana, com liberdade de voto, a nova Lei de Embriologia e Fertilização Humana, que autoriza precisamente a criação de tais embriões. Para isso contribuíram a intensa consulta pública e sobretudo a participação activa, nos debates parlamentares, ao longo de meses, de uma série de cientistas. “A comunidade científica passou imenso tempo a tentar explicar aos deputados o que pretendia fazer”, disse ontem, em conversa telefónica com o PÚBLICO, no seu laboratório do King”s College de Londres, o biólogo Stephen Minger, um dos grandes protagonistas do processo.A aprovação segue-se de facto a meses de controvérsia, com grupos religiosos e pró-vida a ameaçarem com cenários apocalípticos de ficção científica, argumentando que se a nova lei fosse para a frente, os investigadores passariam a brincar impunemente aos Frankensteins. Mas esses apelos não convenceram a maioria dos parlamentares. “Muitos deputados disseram-me que, se não tivéssemos falado com eles, teriam votado contra”, diz Minger. “E muitos mudaram de opinião porque lhes fornecemos a informação suficiente para não terem medo do que queríamos fazer.”O cientista mostra-se manifestamente aliviado, não fosse ele o líder de uma das duas únicas equipas britânicas a terem sido autorizadas, em Janeiro deste ano e no âmbito da actual legislação, em vigor desde 1990, a clonar embriões híbridos: “Vamos finalmente conseguir fazer a nossa investigação sem recearmos que ela possa vir a ser proibida.”
Linhagens de estaminaisA decisão histórica dos britânicos abre as portas à medicina do século XXI, tornando legais quatro categorias de embriões híbridos: os “cíbridos”, os embriões humanos transgénicos, as quimeras e os híbridos verdadeiros.A categoria que interessa particularmente aos cientistas e a Minger em particular – foi precisamente para isso que o seu laboratório obteve a licença em Janeiro – é a dos cíbridos (ou “híbridos citoplásmicos”), obtidos através da mesma técnica que permitiu clonar a ovelha Dolly. Uma célula humana é objecto de uma fusão com um ovócito animal ao qual foi previamente retirado o seu núcleo. O cíbrido resultante contém 99,9 por cento de ADN humano e 0,1 por cento de ADN animal e evita o recurso à doação de ovócitos por mulheres para fins de investigação científica.Mas, no fundo, também não são os cíbridos o objectivo final dos cientistas: estes embriões efémeros, bolinhas de pouco mais de 20 células, destinam-se a atingir um outro fim, que consiste em recolher neles, por volta do quinto ou sexto dia, quando atingem o estádio dito de blastocisto, as famosas células estaminais embrionárias humanas – ou, neste caso, humanas a 99,9 por cento, o que é essencialmente a mesma coisa para os cientistas. Em entrevista dada ao PÚBLICO no ano passado, Minger explicava que o seu objectivo é clonar cíbridos utilizando células de doentes neurológicos – com Alzheimer, Parkinson, etc. – de forma a obter linhagens de células estaminais embrionárias específicas dessas doenças humanas para conseguir estudá-las em laboratório e desenvolver novos tratamentos contra elas.
Chineses à frenteA clonagem de embriões híbridos continuará a ser estritamente regulamentada e controlada, como tem acontecido até agora no quadro da lei de 1990, pela Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA): após um apurado escrutínio de cada projecto, os embriões clonados pelas equipas que forem licenciadas só se poderão desenvolver até aos 14 dias e nunca poderão ser implantados no útero de uma mulher ou de um animal.Ninguém tem a certeza absoluta de que esta abordagem funcione, mas as perspectivas são promissoras. Em Abril, a equipa de Lyle Armstrong, da Universidade de Newcastle – a outra equipa que no Reino Unido foi autorizada em Janeiro pela HFEA a proceder a este tipo de experiências -, anunciou que tinha conseguido criar os primeiros cíbridos de vaca e humano. Os embriões clonados viveram apenas três dias, mas espera-se que os próximos sobrevivam o tempo suficiente para se conseguir colher neles as tão procuradas células estaminais. Por outro lado, já no ano passado uma equipa chinesa anunciara que tinha colhido células estaminais em embriões híbridos de coelho e ser humano. “Esses resultados ainda não foram reproduzidos, mas não tenho razão para duvidar deles, Hui Zhen Sheng [da Universidade de Xangai] é uma cientista de grande qualidade”, diz Minger.E nos outros países?Será que a decisão histórica do Reino Unido vai criar adeptos noutros países, nomeadamente da União Europeia? “Já estamos a assistir a uma liberalização generalizada das atitudes”, responde-nos Minger. “Acho que quando as aplicações médicas estiverem mais próximas da concretização, a oposição aos embriões híbridos vai esbater-se.”Muitos países europeus proíbem actualmente a criação de embriões humanos para fins de investigação científica – a chamada “clonagem terapêutica” – e nenhum deles autoriza a criação de embriões híbridos. Não vão a partir de agora esses países “perder o comboio” da investigação médica? “Nem por isso”, diz Minger, “porque nós tencionamos disponibilizar as nossas linhagens de células estaminais embrionárias [derivadas de embriões híbridos] a todos os cientistas através do Banco de Células Estaminais britânico”.
Se há uma coisa em que Gordon Brown, primeiro-ministro trabalhista britânico, concorda com David Cameron, líder do partido conservador, é na necessidade de legalizar a criação de embriões mistos de animal e humano. Por razões sociais, certamente, mas também por algumas muito pessoais. Acontece que ambos vivem no dia-a-dia tragédias familiares devido a doenças dos seus filhos: um dos filhos de Brown foi afectado por uma grave doença hereditária, a mucoviscidose, e um dos filhos de Cameron sofre de paralisia cerebral e epilepsia.Mas não terão sido razões de um foro tão íntimo a motivar o voto dos muitos outros deputados de ambos os principais partidos – e não só – que aprovaram esta semana, com liberdade de voto, a nova Lei de Embriologia e Fertilização Humana, que autoriza precisamente a criação de tais embriões. Para isso contribuíram a intensa consulta pública e sobretudo a participação activa, nos debates parlamentares, ao longo de meses, de uma série de cientistas. “A comunidade científica passou imenso tempo a tentar explicar aos deputados o que pretendia fazer”, disse ontem, em conversa telefónica com o PÚBLICO, no seu laboratório do King”s College de Londres, o biólogo Stephen Minger, um dos grandes protagonistas do processo.A aprovação segue-se de facto a meses de controvérsia, com grupos religiosos e pró-vida a ameaçarem com cenários apocalípticos de ficção científica, argumentando que se a nova lei fosse para a frente, os investigadores passariam a brincar impunemente aos Frankensteins. Mas esses apelos não convenceram a maioria dos parlamentares. “Muitos deputados disseram-me que, se não tivéssemos falado com eles, teriam votado contra”, diz Minger. “E muitos mudaram de opinião porque lhes fornecemos a informação suficiente para não terem medo do que queríamos fazer.”O cientista mostra-se manifestamente aliviado, não fosse ele o líder de uma das duas únicas equipas britânicas a terem sido autorizadas, em Janeiro deste ano e no âmbito da actual legislação, em vigor desde 1990, a clonar embriões híbridos: “Vamos finalmente conseguir fazer a nossa investigação sem recearmos que ela possa vir a ser proibida.”
Linhagens de estaminaisA decisão histórica dos britânicos abre as portas à medicina do século XXI, tornando legais quatro categorias de embriões híbridos: os “cíbridos”, os embriões humanos transgénicos, as quimeras e os híbridos verdadeiros.A categoria que interessa particularmente aos cientistas e a Minger em particular – foi precisamente para isso que o seu laboratório obteve a licença em Janeiro – é a dos cíbridos (ou “híbridos citoplásmicos”), obtidos através da mesma técnica que permitiu clonar a ovelha Dolly. Uma célula humana é objecto de uma fusão com um ovócito animal ao qual foi previamente retirado o seu núcleo. O cíbrido resultante contém 99,9 por cento de ADN humano e 0,1 por cento de ADN animal e evita o recurso à doação de ovócitos por mulheres para fins de investigação científica.Mas, no fundo, também não são os cíbridos o objectivo final dos cientistas: estes embriões efémeros, bolinhas de pouco mais de 20 células, destinam-se a atingir um outro fim, que consiste em recolher neles, por volta do quinto ou sexto dia, quando atingem o estádio dito de blastocisto, as famosas células estaminais embrionárias humanas – ou, neste caso, humanas a 99,9 por cento, o que é essencialmente a mesma coisa para os cientistas. Em entrevista dada ao PÚBLICO no ano passado, Minger explicava que o seu objectivo é clonar cíbridos utilizando células de doentes neurológicos – com Alzheimer, Parkinson, etc. – de forma a obter linhagens de células estaminais embrionárias específicas dessas doenças humanas para conseguir estudá-las em laboratório e desenvolver novos tratamentos contra elas.
Chineses à frenteA clonagem de embriões híbridos continuará a ser estritamente regulamentada e controlada, como tem acontecido até agora no quadro da lei de 1990, pela Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA): após um apurado escrutínio de cada projecto, os embriões clonados pelas equipas que forem licenciadas só se poderão desenvolver até aos 14 dias e nunca poderão ser implantados no útero de uma mulher ou de um animal.Ninguém tem a certeza absoluta de que esta abordagem funcione, mas as perspectivas são promissoras. Em Abril, a equipa de Lyle Armstrong, da Universidade de Newcastle – a outra equipa que no Reino Unido foi autorizada em Janeiro pela HFEA a proceder a este tipo de experiências -, anunciou que tinha conseguido criar os primeiros cíbridos de vaca e humano. Os embriões clonados viveram apenas três dias, mas espera-se que os próximos sobrevivam o tempo suficiente para se conseguir colher neles as tão procuradas células estaminais. Por outro lado, já no ano passado uma equipa chinesa anunciara que tinha colhido células estaminais em embriões híbridos de coelho e ser humano. “Esses resultados ainda não foram reproduzidos, mas não tenho razão para duvidar deles, Hui Zhen Sheng [da Universidade de Xangai] é uma cientista de grande qualidade”, diz Minger.E nos outros países?Será que a decisão histórica do Reino Unido vai criar adeptos noutros países, nomeadamente da União Europeia? “Já estamos a assistir a uma liberalização generalizada das atitudes”, responde-nos Minger. “Acho que quando as aplicações médicas estiverem mais próximas da concretização, a oposição aos embriões híbridos vai esbater-se.”Muitos países europeus proíbem actualmente a criação de embriões humanos para fins de investigação científica – a chamada “clonagem terapêutica” – e nenhum deles autoriza a criação de embriões híbridos. Não vão a partir de agora esses países “perder o comboio” da investigação médica? “Nem por isso”, diz Minger, “porque nós tencionamos disponibilizar as nossas linhagens de células estaminais embrionárias [derivadas de embriões híbridos] a todos os cientistas através do Banco de Células Estaminais britânico”.
Publicado originalmente no Jornal Público, sem link, a 25 de Maio de 2008.
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