A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas. Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que a perda da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas por um maior número. Assim sendo, numa sociedade justa a igualdade de liberdades e direitos entre os cidadãos é considerada como definitiva; os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes da negociação política ou do cálculo dos interesses sociais. A única justificação para mantermos uma teoria errada está na ausência de uma alternativa melhor; de modo análogo, uma injustiça só é tolerável quando necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo as virtudes primeiras da actividade humana, a verdade e a justiça não podem ser objecto de qualquer compromisso.
Estas proposições parecem expressar a nossa convicção intuitiva sobre o primado da justiça. Foram sem dúvida apresentadas de forma excessivamente nítida. Em todo o caso, pretendo investigar a veracidade destas afirmações, ou de outras similares, e, se assim for, indagar da respectiva explicação. Para tal é necessário elaborar uma teoria de justiça à luz da qual estas afirmações possam ser interpretadas e avaliadas. Começarei por considerar o papel dos princípios da justiça. Admitamos, para assentar ideias, que uma sociedade é uma associação de pessoas, mais ou menos auto-suficiente, as quais, nas suas relações, reconhecem certas regras de conduta como sendo vinculativas e, na sua maioria, agem de acordo com elas. Suponhamos ainda que estas regras especificam um sistema de cooperação concebido para fomentar o bem dos que nele participam. Assim, embora uma sociedade seja uma tentativa de cooperação que visa obter vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada, simultaneamente, tanto por um conflito como por uma identidade de interesses. Há identidade de interesses uma vez que a cooperação torna possível uma vida que, para todos, é melhor do que aquela que cada um teria se tivesse de viver apenas pelos seus próprios esforços. Há conflito de interesses uma vez que os sujeitos não são indiferentes à forma como são distribuídos os benefícios acrescidos que resultam da sua colaboração, já que, para prosseguirem os seus objectivos, todos preferem receber uma parte maior dos mesmos. É necessário um conjunto de princípios que permitam optar por entre as diversas formas de ordenação social que determinam esta divisão dos benefícios, bem como obter um acordo sobre a repartição adequada dos mesmos. Estes princípios são os da justiça social: são eles que fornecem um critério para a atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça, tr. Carlos Pinto Correia, Editorial Presença, 1993, pp. 27-28.
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