«Consideremos um objeto qualquer que seja manufaturado; por exemplo, um livro ou um corta-papéis – eis um objeto que foi feito por um artesão cuja inspiração veio de um conceito. Ele referiu-se ao conceito de corta-papéis e também a um método conhecido de produção, que é parte do conceito – algo que é, em grande parte, uma rotina. Assim, o corta-papéis é ao mesmo tempo um objeto produzido de certa maneira e, por outro lado, tem um uso específico; e não se pode postular um homem que produz um corta-papéis mas não sabe qual é o seu uso. Logo, digamos que, para o corta-papéis, a essência – ou seja, o conjunto das rotinas de produção e as propriedades que lhe permitem ser produzido e definido – precede a existência. Assim, a presença do corta-papéis ou do livro à minha frente está determinada. […] […] Que significará dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. Se o homem, tal como o concebe o existencialista, não é definível, é porque primeiramente nada é. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. Não apenas é o homem o que ele se concebe que é, ele é também apenas o que quiser ser depois de lançado na existência. O homem não é mais que o que faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. […] O homem é no início um projeto que tem consciência de si mesmo, e não um creme, um pedaço de lixo ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu; o homem será o que tiver projetado ser. […] Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro passo do existencialismo é dar a todo o homem a consciência do que é e atribuir-lhe a responsabilidade completa pela sua existência. […]
[…] Se a existência precede realmente a essência, não é possível explicar as coisas tendo por referência uma natureza humana fixa e dada. Por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos valores ou mandamentos a que nos agarrarmos que legitimem a nossa conduta. Assim, no domínio luminoso dos valores, não temos qualquer desculpa por detrás de nós, nem qualquer justificação perante nós. Estamos sós, sem desculpas. É esta ideia que tentarei traduzir quando digo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; no entanto, relativamente ao resto, é livre: porque, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não acredita na força da paixão. Nunca concordará que uma paixão arrebatadora é uma torrente devastadora que fatalmente conduz o homem a certos atos, sendo portanto uma desculpa. Ele pensa que esse homem é responsável pela sua paixão.»
Jean-Paul Sartre (1946), O Existencialismo é um Humanismo,
trad. de Vergílio Ferreira, Quetzal Editores, 2012,(adaptada).