Peter Singer: O uso e abuso da liberdade religiosa

Quais são os limites certos da liberdade religiosa? Marianne Thieme, líder do Partido pelos Animais da Holanda, responde da seguinte forma: “A liberdade religiosa termina onde o sofrimento humano ou animal começa”.

O Partido pelos Animais, o único partido pelos direitos dos animais com representação num parlamento nacional, propôs uma lei que exige que todos os animais sejam atordoados antes do abate. A proposta uniu líderes islâmicos e judeus em defesa daquilo que consideram uma ameaça à sua liberdade religiosa, porque as suas doutrinas religiosas proíbem a ingestão de carne de animais que não estejam conscientes quando são abatidos.

O parlamento holandês concedeu aos líderes o prazo de um ano para provar que os seus métodos de abate ditados pela religião não são mais dolorosos do que o abate precedido de atordoamento. Caso não consigam fazê-lo, a exigência de atordoamento antes do abate será implementada.

Entretanto, nos Estados Unidos, bispos católicos afirmaram que o presidente Barack Obama está a violar a sua liberdade religiosa ao exigir que todas as grandes entidades empregadoras, incluindo universidades e hospitais católicos, ofereçam aos seus trabalhadores seguros de saúde que incluam a contracepção. E, em Israel, os ultra-ortodoxos, cuja interpretação da lei judaica proíbe os homens de tocar nas mulheres que não sejam suas esposas ou com quem não tenham relacionamento, pretendem separar os lugares para homens e mulheres nos autocarros e suspender o plano do governo para acabar com a isenção do serviço militar para estudantes religiosos a tempo inteiro (63 mil em 2010).

Quando as pessoas são proibidas de praticar a sua religião – por exemplo, através de leis que proíbem determinadas formas de adoração – não poderá haver quaisquer dúvidas de que a sua liberdade religiosa foi violada. A perseguição religiosa era habitual nos séculos passados e actualmente ainda persiste em alguns países.

Mas o facto de se proibir o abate ritual de animais não impede os judeus ou os muçulmanos de praticarem a sua religião. Durante o debate sobre a proposta do Partido pelos Animais, o rabino Binyomin Jacobs, grande rabino da Holanda, dirigiu-se aos membros do parlamento com a seguinte afirmação: “Se já não tivermos ninguém que possa fazer o abate ritual na Holanda, deixaremos de comer carne”. E isso, obviamente, é o que se deve fazer quando se professa uma religião que exige que os animais sejam abatidos de uma forma menos humana do que aquela que se pode conseguir através de técnicas modernas.

Nem o Islão nem o Judaísmo defendem qualquer obrigação de comer carne. Não peço aos judeus e aos muçulmanos que façam mais do que eu próprio optei por fazer, por razões éticas, há mais de 40 anos.

Restringir a legítima defesa da liberdade religiosa à rejeição de propostas que impedem as pessoas de praticar a sua religião, torna possível a resolução de muitos outros litígios em que se afirma que a liberdade de religião está em jogo. Por exemplo, permitir que homens e mulheres se sentem em qualquer lugar de um autocarro não viola a liberdade religiosa dos judeus ortodoxos, porque a lei judaica não ordena que se utilizem os transportes públicos. É apenas uma comodidade da qual se pode prescindir – e os judeus ortodoxos têm dificuldade em acreditar que as leis que professam tivessem o objectivo de tornar a vida o mais cómoda possível.

Da mesma forma, a exigência do governo Obama de oferecer um seguro de saúde que cubra a contracepção, não impede os católicos de praticarem a sua religião. O catolicismo não obriga os seus seguidores a gerir hospitais e universidades. (O governo já isenta as paróquias e dioceses, o que estabelece uma distinção entre as instituições que são fundamentais para a liberdade da prática religiosa e as que são periféricas.)

É claro que a Igreja Católica teria relutância em abdicar das suas extensas redes de hospitais e universidades. Estou em crer que, antes disso acontecer, acabariam por considerar que a contracepção coberta pelo seguro de saúde é compatível com os seus ensinamentos religiosos. Mas, se a Igreja tomasse a decisão contrária, e entregasse os seus hospitais e universidades a organismos que estivessem dispostos a oferecer tal cobertura, os católicos continuariam a ter liberdade para adorar e seguir os ensinamentos da sua religião.A isenção do serviço militar por convicção religiosa pode ser mais difícil de resolver, porque algumas religiões ensinam o pacifismo. Este problema é geralmente resolvido através de um serviço alternativo que não é menos árduo do que o serviço militar (para que essas religiões não atraiam seguidores apenas por essa razão), mas que não implica lutar ou matar.

O judaísmo, no entanto, não é pacifista, assim, mais uma vez, não está em jogo qualquer questão de liberdade. Os ultra-ortodoxos querem isenção para aqueles que dedicam o seu tempo ao estudo da Torá, justificando que para o bem-estar de Israel, o estudo da Torá é tão importante quanto o serviço militar. No entanto, a opção de um serviço nacional não-combatente não irá resolver esta disputa, a menos que esta consista no estudo da Torá. Mas não há nenhuma razão para que a maioria laica de Israel partilhe a convicção de que ter dezenas de milhares de ultra-ortodoxos a estudar a Torá traga qualquer benefício à nação, e não é com certeza uma tarefa tão árdua como o serviço militar.

Nem todos os conflitos entre religião e Estado são fáceis de resolver. Mas o facto destas três questões, que actualmente causam controvérsia nos seus respectivos países, não dizerem realmente respeito à liberdade de praticar uma religião, sugere que o apelo à liberdade religiosa está a ser mal utilizado.

Tradução de Teresa Bettencourt/Project Syndicate

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